
Caos e criação em
"Matamoros", de Hilda Hilst *
O
segundo relato de Tu não te moves de ti,
de Hilda Hilst, "Matamoros (da fantasia)", tem como protagonista
Maria Matamoros, mencionada no texto inicial do livro, denominado Tadeu (da
razão). A narrativa desenvolve-se em um ambiente bucólico, cuja atemporalidade
parece restaurar uma atmosfera de arte clássica, aberto sensualismo, vida
campestre e dimensão simbólica. Assemelha-se a uma pastoral na qual o locus amoenus transmuta-se em palco de
uma tragédia amorosa. Portanto, há uma inversão em relação ao universo
contemporâneo e urbano de Tadeu.
Além
de um caminho de/para a narrativa anterior, há uma relação entre Matamoros e
“Axerold (da proporção)”, última parte do livro. A conexão entre os três
relatos se dá não apenas pela presença de personagens em comum, mas também pela
ligação entremostrada pelos subtítulos. Ao ser estabelecido tal relacionamento,
contudo, a narrativa assume a forma de um tríptico narrativo flutuante, no qual
as três partes constitutivas tanto guardam autonomia quanto formulam uma aproximação
com a forma do romance.
Ainda
na construção da teia hilstiana em “Matamoros”, podemos observar que é uma
reescritura da peça teatral O visitante,
elaborada em 1968, porém só publicada muitos anos depois. Nos dois textos,
podemos observar o abalo promovido na vida de mãe e filha pela presença de um
estranho que desestabiliza o convívio entre as duas, trazendo à tona todos os
sentimentos advindos da ideia de traição.
A
inscrição parentética da palavra fantasia no título da narrativa torna necessário
um entendimento mais aprofundado da conotação que o termo imprime ao texto,
conhecimento capaz de revelar sob qual perspectiva a inclusão dele dá validade
à sua presença ordenadora.
Abbagnano
(1998, p. 445) esclarece que o termo “fantasia” surgiu como uma forma
sinonímica de imaginação. Posteriormente, a partir do século XVIII, a
necessidade de distinção levou a se atribuir à fantasia o sentido de uma
imaginação excessiva, contida na filosofia de Kant para o qual a fantasia é “a
imaginação que produz imagens sem querer”.
A
esse primeiro sentido, no entanto, o mesmo autor acrescenta um outro,
diretamente relacionado ao emprego da palavra fantasia no título de Matamoros,
advindo da estética romântica:
(...) segundo o qual
a Fantasia é entendida como imaginação criadora, diferente, em qualidade mais
do que em grau, da imaginação reprodutora comum. Nesse sentido, Hegel via a
Fantasia como "imaginação simbolizadora, alegorizadora e poetante",
logo “criadora" (Ene, §§ 456-57). Os românticos exaltaram a Fantasia assim
entendida. Para Novalis, ela é "o máximo bem" (Fragmente, 535).
"A Fantasia", dizia ele, "é o sentido maravilhoso que em nós
pode substituir todos os sentidos. Se os sentidos externos parecem submeter-se
a leis mecânicas, a Fantasia evidentemente não está ligada ao presente nem ao
contato de estímulos anteriores" (Ibid., 537). Desse modo, o caráter
desordenado ou rebelde da imaginação fantasiosa, em virtude do qual essa forma
de imaginação parecia inferior às outras no séc. XVIII, no séc. XIX passa a ser
elemento positivo, um mérito, uma característica da liberdade criadora. A
estética romântica ateve-se a essa valorização da fantasia. (1998, p. 446)
Do uso sinonímico de fantasia como imaginação criadora, Hegel nos deixou uma passagem bem explícita: “A imaginação criadora de arte, ou fantasia [grifo nosso], é própria de um grande espírito e de uma grande alma, é a que apreende e engendra representações e formas, a que dá uma expressão figurada, sensível e precisa aos interesses humanos mais profundos e gerais” (1991, p. 42). Essa associação permite ler a narrativa de Matamoros como metáfora da criação literária.
Ascensão
da fantasia
A
narrativa é a reconstituição dos acontecimentos que trouxeram a Matamoros
êxtase e terror oriundos de uma experiência em que as dimensões do sonho e da
realidade são atravessadas. A voz da narradora inicia a recuperação mnemônica
de sua trajetória localizando-a em um passado indeterminado, o emprego das
formas pretéritas, no entanto, é constantemente substituído pelo emprego das
formas do presente do indicativo em transcrições de diálogos e em trechos
referentes às reflexões e aos estados de espírito da protagonista. Em alguns
momentos, profecias de um futuro ignorado pelo leitor mas inscrito no
repertório das experiências da narradora são acrescentados ao texto. Veja-se,
por exemplo, as seguintes passagens: “teria sido graça não conhecer aquele que
me fez conhecer, e de minha mãe Haiága, fez a desgraça. (HILST: 2004, p. 64)”;
“conheci o homem que me deu luz à vida, mas também me deu sangue e ensanguentou
Haiága” (HILST: 2004, p. 65).
O
desenlace sangrento da história parece justificar a afirmação inicial da
narradora com a qual se coloca sob o signo da melancolia para explicar sua
natureza saturnina: “Amei de maneira escura porque pertenço à Terra” (p.
61).
Há,
por conseguinte, um ponto de tangência entre a constituição dos protagonistas
das duas histórias. É bem verdade que Matamoros não possui pretensões
estéticas, ao contrário de Tadeu. Sua natureza melancólica, todavia, não recebe
de modo passivo a produção onírica de outro homem. Ela desenha com as linhas do
próprio desejo o sonho de uma perfeição alheia também desenhada em outro sonho.
Por isso Simeona, a vidente que exerce um papel fundamental para a compreensão
do texto, pode afirmar a existência de um estado que se ajusta perfeitamente ao
desejo de cada um: “porque é sonho de outro feito de perfeição viste nele o teu
próprio sonhado, e todas hão de vê-lo matéria do que sonham, amolda-se conforme
desejo de qualquer, não é de carne, e repito não é, repito ainda que tu me
mostres dele o sangue derramado (p. 93)
O
sonho de Matamoros é explicitado em um desabafo endereçado a Deus após o
encontro com Biona e Ruffina:
Matamoros deitava-se,
as pernas separadas, as mãos em concha lá no escuro da fome, e sonhava uma
cara, alguém, e nessa construção de cara muito me demorava, um ovalado de face,
umas sombras pinceladas de um pequeno azul no debaixo dos olhos, estava assim
cansada essa cara de tanto amor por mim, ia aos poucos construindo-lhe a boca,
mas nunca consegui um profundo perfeito, depois a mão agora esticada se
apressava e Matamoros a essa cara imperfeita acrescentava um corpo, que
dificultoso exercício, Soberano, esse de gozar contente partindo apenas de uma
ideia confusa que nos vem à mente (p. 102)
Também
aqui pode ser encontrada a protagonista em recessus,
isolada na natureza, apartada da agitação mundana e entregue a um estado de
torpor e fantasia semelhante à experiência de Tadeu ao desencaixar-se do lugar
programado para viver o pesadelo de uma vida inautêntica e buscar o ponto do
qual a criação é possível.
A
segunda parte de Tu não te moves de ti
pode, então, ser entendida como uma narrativa em que se afirma o processo
criador como fusão das caligrafias estética e erótica, unidas pela fantasia.
O
surgimento de Meu se dá em um momento em que Matamoros “pensava em nada, [...]
nada pensante em uma tarde rara” (p. 65) . O surgimento da nova criatura se dá
sob a o domínio do torpor e do inquieto discorrer de fantasia em fantasia,
marcas de idêntico estado de acídia vivido por Tadeu.
Meu
é um sopro e uma aporia. Fruto de evagatio
mentis e de curiositas, prole das
filiae acediae, construído tanto com
a dispersão e o abandono a um nada carregado de falta e ausência – do qual Meu
é a materialidade do que é negado ‒, quanto com a insaciável necessidade de
ver, conhecer, buscar “o que é novo só para saltar mais uma vez para o que
ainda é mais novo” (Agamben: 2007, p, 27). Curiositas
é a perversão de Matamoros, a força incontrolável de tudo tocar e ser tocada por
todos, seu estar-aí como entrega a um não saber o que aí está.
Matamoros
não recebe Meu pura e simplesmente como um sonho mediante o qual um indivíduo
escapa à sem-razão da própria existência, não vive apenas à sombra do seu
encantamento, não circula aleatoriamente em torno de uma figura em fuga de
outro relato. Ela constrói, de modo simultâneo, o desejo e a impossibilidade de
alcançá-lo, ao dar espaço a Meu como epifania do inapreensível.
É
possível avançar, então, para a outra ponta da gênese do homem-anjo, tão
pertinente quanto aquela ancorada em outro relato. Matamoros vive na plenitude
do nada, sob o signo da acídia:
É assim que a ambígua
polaridade negativa da acídia se torna o fermento dialético capaz de
transformar a privação em posse. Já que o seu desejo continua preso àquilo que
se tornou inacessível, a acídia não constitui apenas uma fuga de..., mas também
uma fuga para..., que se comunica com seu objeto sob a forma da negação e da
carência. (Agamben: 2007, p. 32)
A
ação se desenvolve em uma dimensão atemporal e numa espacialidade indefinida:
“Cheguei aqui nuns outubros de um ano que não sei, não estava velha nem estou,
talvez jamais ficarei porque faz-se há muito tempo nos adentros importante
saber e sentimento” (HILST: 2004, p. 61). A protagonista – Matamoros – carrega
com prazer um nome em que se guarda um apelo à luta e à disseminação da morte,
ao qual se incorpora ainda um percurso existencial caracterizado por uma
contínua ação de matar-se desde menina. Da busca do sentido de suas origens,
resta uma ressonância belicista desmesurada, como se o nome que lhe foi dado a
destinasse a um confronto de terrível tragicidade, forma nominal onde se
manifestam em estado de latência os germes da dúvida, do ciúme, do ódio e do
rancor que lhe envenenam o espírito.
Cedo
desdobre a força do desejo exposto de modo livre e espontâneo, compartilhando
sexo e delícias com os meninos, no ambiente campestre ao redor da aldeia onde
morava. A natureza livra-a de obediência a normas reguladoras de comportamento,
reduzidas à voz materna. Os sentidos sustentam um aprendizado de prazeres,
lição que só pode ser concluída com êxito mediante o exercício de jogos
sensuais na proximidade das fronteiras da vigilância materna. A intensidade
alcançada nas brincadeiras eróticas é alimentada justamente pelo fato de
ocorrerem em vizinhança perigosa. O prazer gerado no corpo é potencializado com
a ruptura de linhas culturais representadas pelas prescrições maternas,
rompidas pela invasão a uma zona de prazer não liberada em que o código de
conduta é rasgado e a sexualidade aflora sem peias.
O
mundo é algo a ser apalpado, tocado. O conhecimento de Mamatoros resulta da
apreensão da realidade pelos sentidos: “desde sempre tudo toquei, só assim é
que conheço o que vejo” (HILST: 2004, 61). A propulsão a tudo examinar mediante
toques, da qual a livre sexualidade é apenas um derivativo, leva a mãe a
recorrer a um especialista capaz de normalizar o comportamento da filha,
adequando-o às regras de convívio.
O
indivíduo escolhido para reconduzir Matamoros ao caminho da normalidade,
ironicamente um padre, em lugar de rezas e exorcismos, aproveita-se sexualmente
da situação e ensina novos toques e carícias à menina de oito anos. O exercício
de pedofilia não registra traumas aparentes no desenvolvimento da história. O
que vem à memória de Matamoros é antes uma sensação agradável produzida pela
junção de duas situações que a excitavam: a proximidade da mãe, vizinhança de
um perigo que a fascinava, e a perícia do homem. O resultado do aprendizado foi
repassado por Matamoros aos meninos da aldeia, sem que a propensão a tocar em
tudo diminuísse: “Ó menina, por que tocas em tudo como quem vai dissecar uma
fundura? Diz a mãe em cara retorcida em uma agonia de choros” (HILST, 2004, p.
63).
Maria
Matamoros, cuja curiosidade levou-a precocemente a acostumar-se ao livre
exercício da sexualidade com os homens, contrapõe-se a Rute, mulher assexuada
da história precedente. Liberdade que sucumbe, no entanto, após um encontro que
irá mudar o rumo de sua vida, escravizando-a aos encantos de uma dimensão
incomum.
A
experiência de Matamoros, sua iniciação sexual pelas mãos do homem de rezas – o
adulto confiável –, o inocente prazer advindo do sexo, transformado em espécie
de jogo infantil por uma menina de oito anos, prenunciam a narrativa de O Caderno Rosa de Lory Lamby, publicado
em 1990, primeiro livro da denominada trilogia obscena de Hilda Hilst, cuja
primeira frase da libertina mirim é justamente “Eu tenho oito anos”. Lori Lamby
compartilha com Maria Matamoros a mesma inocência e entrega a todo tipo de
carícia.
Acaso
ou destino, o encontro entre Matamoros e Meu é o momento em que a protagonista
se desencontra. Marca a subtração de qualquer ideia de felicidade, ao escrever
tal possibilidade com letras de dissimulação. Subtração assinalada no texto
pela manifesta perda de domínio sobre os seus gestos, sombras emanadas do
querer de seu homem: “de olhá-lo soube que a alma me tomaria, tomou-a” (HILST:
2004, p. 66).
Indivíduo
sem nome, Meu é revelação de uma ironia pungente. Não se trata apenas de
recurso retórico, tropo; a ironia é também o modo absurdo do destino humano, a
forma cruel do existir. Matamoros ao designá-lo por Meu, nomeia quem se recusa
a ser nomeado, revelado. Batiza-o com a fantasia de que somente ela é
portadora, ou seja, profere um sonho de perfeição em voz alta e passa a usá-lo
para referir-se ao estranho. Meu nega o batismo amoroso: não pode ser contido
nas fronteiras do desejo de Matamoros, possui uma natureza inapreensível,
contém uma beleza como objeto de tentação aberta a todas as outras mulheres, é
algo sem correspondência com a forma de pronome possessivo. A inscrição de
ideias de posse, possessão e domínio no corpo de Meu deixa à mostra a insuficiência
do olhar de Matamoros, uma vez que se projetam no amado marcas existentes na
pele do desejo de uma mulher tomada completamente pela embriaguez dos sentidos.
É no terreno da impalpável que ela sucumbe.
Matamoros,
ao referir-se ao modo pelo qual Meu surgiu em seu caminho, reconstitui um fato
passado, produzindo uma narrativa em primeira pessoa que explicita de modo
exemplar a consciência da intraduzibilidade da experiência, vista como um
acontecimento de espessa impenetrabilidade, daí a necessidade de voltar-se
sobre o próprio relato para apontar a insuficiência de sua história, acentuando
seu caráter metaficcional:
Conto esta estória
desta forma como se houvesse o tempo de horas para contá-la mas assim não era o
que se passava entre mim e o homem, ele via também? Tento dizer que não havia
um seguimento de paisagens, que não era como se eu visse uma e depois outra,
esse seguir adiante não era, o que eu via era amplo e descabido para o
entendimento, soube de antigos de mim (HILST: 2004, p. 67)
Embora
tomada por Meu, presa ao fascínio da perfeição masculina, logo no início de seu
encantamento Matamoros estremece e fica perturbada com falas e situações
ambíguas, tempero de suas futuras desconfianças. Estranha o conhecimento do
forasteiro sobre o passado de Haiága: “Haiaga é tua mãe, e mãe de Haiága não
há, morta pois não, quando Haiága nasceu? Eu disse que sim estremecendo, como
podia ter artes de adivinho, como?” (HILST: 2004, p. 70) Não obstante, o que poderia
ser visto como indício de um conhecimento anterior de Meu a respeito de Haiága,
após um súbito estranhamento, é relegado ao campo do aleatório.
O
surgimento de Meu corresponde ao desencadeamento de um conjunto de alterações
físicas em Haiága, rejuvenescendo-a e revelando uma beleza antes encoberta. As
duas ações, simultâneas e inesperadas, intrigam Matamoros e jogam-na em um
crescente estado de dilaceração de seus sentimentos filiais.
Os
cuidados corporais de Haiága, antes desconhecidos, são percebidos como
expressão de uma modificação que ultrapassa as dimensões meramente físicas. É o
que se depreende de observação registrada pela protagonista:
Mudada minha mãe, a
garganta de escolhidas palavras, o cabelo tinha lustros de óleos esquisitos,
banhava-se com folhas, com pétalas secas, grãos amassados resultava num redondo
de pasta, esfregava no corpo essas matérias, eu dizia Haiága minha mãe, não é
que te tornaste bela? (HILST: 2004, p. 71)
A
preocupação com a escolha de palavras indica uma alteração que ultrapassa os
limites do corpo, denota também uma mudança de estado de espírito, uma
preocupação de natureza psicológica a esconder a irrupção de sentimento
clandestino pelo qual se inverte o prazer infantil da filha. Agora aparece uma
inversão no jogo perigoso de paixões, parece que a mãe é quem se aventura a
entrega aos prazeres nas fronteiras do domínio filial. No entanto, na
metamorfose de Haiága ainda não há nada sujeito à condenação: “olhei-a, e não
era mais velha, tinha a pele colada aos pomos do rosto, tinha um encanto, uma
soberba no porte, e começou a cantar canção desconhecida, sem palavras.”
(HILST; 2004, p. 71) Por que uma canção de um tempo anterior ao da filha? Que
lembranças estão contidas em suas notas? Que prazeres secretos segredam a sua
harmonia? Que felicidade antiga incluiu a sua partitura na memória de Haiága? A
trama arma a sua sombra.
O
surgimento de Meu na vida de ambas coincide com diferenças também observadas no
discurso de Haiága: uma duplicidade escorregadia, carregada de subentendidos,
palavras a exigir esclarecimentos, uma flutuação de sentidos amplificadora das
desconfianças iniciais da filha. A ambiguidade banha o súbito embelezamento
materno, ao mesmo tempo em que conduz a insegura Matamoros por caminhos sombrios.
A
dúvida sobre a causa da metamorfose materna não tarda a surgir de maneira ainda
tímida, manifestada em diálogo entre ambas: “porque as mães também mudam se o
amor lhes vêm / o amor? / claro, Maria, o meu amor por ti, agigantado, de te
ver boa, sem o bulir de antes.” (HILST: 2004, p. 72) A indagação da filha não
pode ser plenamente respondida pela mãe. Entre os pensamentos de Matamoros fica
instalado o germe da suspeita. A busca de uma nebulosa razão para a
justificativa dada, julgada insuficiente, parece inevitável. Apesar de a
protagonista tentar apagar as dúvidas, elas ficam como rasuras de uma negação
imperfeita. Daí em diante a fala da filha acerca de Haiága será pontuada por
uma reflexão envenenada.
O
confronto entre as duas mulheres aumenta ao Matamoros tomar conhecimento de que
a mãe levanta-se de madrugada para preparar o alimento destinado a Meu,
usurpando funções que deveriam ser restritas à filha. Haiága, em resposta à
observação referente a seu aspecto renovado e a alegria reencontrada na
velhice, profere uma frase carregada de jubiloso rancor: “alegria sim, maior
que a tua” (HILST: 2004, p. 73). A superioridade impregnada em suas palavras
não advém de uma reação emocional momentânea, assume uma conotação de
beligerância feminina, disputa pelo mesmo homem, ao permitir uma leitura
maliciosa como explicação de uma felicidade excessiva sem causa localizada.
Em
Matamoros, paulatinamente, a clareza sobre os acontecimentos é algo que cresce
gradualmente. Magoada pela frase ferina, reage afirmando a existência de culpa
no tom das palavras proferidas por Haiága. Logo, no entanto, compreende a
natureza do desencontro, a existência de um combate cada vez mais agudo entre
ambas: “olhava-me como alguém que amava trigorosamente o que me pertencia, amava-o”
(HILST: 2004, p. 74). A raiva intestina ainda não a domina completamente, os
laços filiais sustentam um jogo de afirmação e negação das intenções amorosas
de Haiága.
A
narradora-protagonista solicita à mãe não mais levantar-se cedo, sob a alegação
de que na idade dela as pessoas devem descansar. Antes de revelar qualquer
espécie de preocupação, o motivo dado é apenas um instrumento para ferir a
rival. A tensão despertada pela disputa lança as duas num jogo de agressão e
reconciliação.
Um olho todo fêmea,
Matamoros redesenha o corpo da mãe com os olhos da insegurança. Ao comparar-se
fisicamente a ela, percebe a posição desvantajosa que ocupa: as mãos, a pele,
as ancas, o ventre, todo o corpo de Haiága adquire um viço desconhecido e uma
beleza misteriosa, tudo contribui para inserir em seu espírito a sombra de uma
constatação dolorosa: “Haiága vencia se um homem nos colocasse à frente do
desejo” (HILST: 2004, p. 77). Corpo obscurecido por aquele que o gerou,
Matamoros alivia-se em discurso vingativo: “estás mais gorda, Haiága, te
cresceu a barriga” (HILST: 2004, p. 77).
Os
reflexos das mudanças sofridas por Haiága produzem sucessivamente surpresa,
desconfiança, inveja, ciúme e ódio em Matamoros. Se as suspeitas nascidas
apenas de observações feitas pela filha sobre o corpo e o comportamento da mãe
e dos diálogos mantidos entre ambas podem ser relativizadas por ficarem
restritas a um círculo extremamente fechado, familiar, do qual somente as duas
fazem parte, a introdução de comentários extrafamiliares, nos quais a filha é
vista como figura inexpressiva diante do deslumbrante renascer da mãe, confere
às suspeitas filiais um selo de veracidade, de confirmação, aumentando o
sentimento acusatório intestino em que Matamoros vai se afundando cada vez mais.
As
falas dos homens e mulheres da aldeia endereçadas à Haiága provocam o
aprofundamento do estado inquisitorial em que Matamoros parece mergulhada,
imersa num minucioso exame das ações da rival. Escuta, inquieta e perturbada,
as comparações estabelecidas pelos aldeões entre a exuberância física e o
estado radiante da mãe com os seus reduzidos atributos físicos e a sua alegria
em modo menor. Uma revelação mais assustadora surge no passeio campestre: a
semelhança da beleza de Haiága com à da Virgem às vésperas do nascimento de
Cristo e a percepção do aumento dos seios maternos. As duas referências nas
conversas dos camponeses desabam uma tempestade de fogo em Matamoros, desenham
um indesejado sentido para a constatação feita anteriormente sobre o
crescimento da barriga.
Depois
de impedir a mãe de acompanhá-la até o alto da colina, lugar onde o homem
responsável pela inimizade entre as duas exercia o ofício de pastor de ovelhas,
a protagonista ouve, no meio do caminho, a canção desconhecida de Haiága sendo
entoada pelo amado. A música soa como cantiga de núpcias entre aquela que
“deixou de ser mãe para ser amante” (HILST: 2004, p. 81) e o estranho perfeito,
sua harmonia revela um afinado e secreto dueto cuja beleza transtorna
Matamoros, despertando-lhe o desejo de morte da mulher que a pusera no mundo.
Simeona,
a bruxa: travessia e expansão textual
É
sob um estado psicológico revolto e abalada pela descoberta de fios formadores
de um tecido confeccionado por traições que Matamoros encontra Simeona, a bruxa,
excluída da aldeia, onde antes era amada, devido ao fato de anunciar “sangue
numa casa da aldeia sujando para sempre as mãos da nossa gente” (HILST: 2004,
p. 87).
Há
um dimensão simbólica neste encontro refletida no modo topográfico de sua
realização: no alto de uma colina, na sequência de um movimento ascendente
buscado para promover o alívio das tensões que exasperavam Matamoros: “de minha
ira invejosa quis eu afastar-me” (HILST: 2004, 79). O plano mais elevado, não
obstante, não lhe reserva nenhum apaziguamento. Em vez de recuperar o estado de
felicidade ao lado de Meu, consegue apenas ampliar a fissura entre desejo e
realidade, ao perceber na canção sem palavras nos lábios do amado a presença
usurpadora de Haiága; fenda transformada pelas palavras de Simeona em uma
verdade insuportável, pois inscreve a sua existência como pura materialidade
onírica. Por isso, a reação de Matamoros à profecia em que seu destino é
traçado em sangue é dormir, sonhar. Em seus sonhos, a sua real condição de
criatura ficcional surge nas palavras-fantasias, signos metalinguísticos de sua
verdadeira natureza:
mormaria, pedaço
feitos de morte e de meu nome, amormór, de morte ainda e de pesado amor,
loucocim, pedaço feito de cima e inteiro de louco, tarDeus, de tarde avançando
no de cima, poncartor, ponte de carne subindo na torre, e outras vindas da
terra de ninguém, balbucios melados, rouquidão de águas gotejando um telhado,
suspiros arrulhentos (HILST: 200, 95)
A
recusa à realidade exibida pela profecia engendra na protagonista mecanismos
defensivos com os quais tenta afastar as previsões sombrias do seu caminho,
abrindo-se a explicações capazes de limpar as atitudes maternas de qualquer
suspeita. Este movimento descendente, verdadeira fuga ao enfrentamento de sua
natureza mais íntima, produz alívio efêmero, pois volta para casa, para o duelo
viperino com Haiága.
A
pedido da protagonista, a feiticeira tenta aliviá-la dos sentimentos negativos
que dominam o seu espírito. Com seu espelho de terra, pode observar a
verdadeira natureza de Meu – homem-anjo, criatura intocável. Não consegue
dissuadir Matamoros a romper o seu aprisionamento a um viver encantado, pois
ela habita um território onde a razão se desvanece. Homem vindo de lugar
desconhecido, forma idealizada da perfeição humana, aos olhos de Matamoros
existir ao lado de Meu permitia acessar um estado de suprema felicidade. Esse
excesso de felicidade, tradução de uma vida irreal, justifica o emprego do
termo fantasia no título da história, fato reforçado no texto com a afirmação
da vidente Simeona A Burra:
Com esta boca três
mil vezes bendita te digo que é beleza excessiva para tomares posse, que hão de
amá-lo todas as mulheres porque não é homem de carne, é pensamento-corpo
sonhado por um homem de outras terras, homem que deseja formosura de alma
porque tem vida de penumbra e tediosa, ai Maria, vives com alguém feito de
matéria nova, com alguém que existe dentro de uma cabeça que tem fome de muita
beleza, cabeça que se ocuparia das letras, que não pôde usá-las por fraqueza,
deveria ter sido um cantador, entendes, e não pôde cumprir destino coroado,
vives com a alma pensada de outro homem, e tem nome esse com que vives, esse
sonhado de outro, pois aquele que sonha esse teu incarnado deu-lhe um nome (p.
88-89)
Surpreendente é a conexão estabelecida entre o misterioso homem-anjo Meu e o angustiado Tadeu. Ao condenar o nome atribuído por Matamoros ao marido, de quem esta sequer sabia o nome verdadeiro, a feiticeira enuncia uma revelação:
o nome que lhe deu
esse pobre-rico-coitado é nome longe de nós, sílaba martelada e depois nome de
Deus, TADEUS, chamou-o assim porque desse nome tem nome parecido, quer a vida
que o teu anjo tem, sonha com liberdades, com terras, animais, é mais raiz de
planta do que carne, liberdade de funduras é o que o outro pretende sem poder,
vive uma vida de enganos, cercado de poeiras da matéria, tem mulher enfeitada
de vidrilhos brilhantes, tem um lago na casa, lago de águas tão estranho porque
a margem não se vê de capins, é uma coisa de pedra muito lisa o que contorna a
margem, a vida desse outro é toda como se fosse pintada, entendes? Não é
matéria viva. (p. 89-90)
Confundem-se,
portanto, Meu, a enigmática figura masculina, e Tadeu, renomeado Tadeus. A
bruxa consegue enxergar a vida anterior de Meu, seu isolamento e a incapacidade
criativa, seu intenso desejo de outra existência, longe do convívio com a sua
mulher-adereço, do vazio da piscina onde naufragam utensílios inúteis: “E tanto
deseja viver vida de nossa gente, tanto lá por dentro a nós se assemelha que
deu forma pulsante e muito ilícita, (porque poderes assim só os tem Deus) Deu
forma, Maria, ao que sempre viveu no informe, no desejo”. (HILST: 2004, p. 90)
É
por intermédio de um olhar excêntrico, afastado, de uma visão capaz de
apreender aquilo que não se deixa ver pelo olhar comum, que a realidade
incorpórea de Meu pode ser identificada ao processo criador, ao ato produzido
pela junção de sílaba martelada e Deus. A alteração do equilíbrio imperante na
relação entre Matamoros e Haiága, uma vez que ambas se apaixonam pelo mesmo
homem, não advém simplesmente da presença de Meu, mas resulta do fato de
existirem nos limites do sonho de Tadeus, transformado finalmente em demiurgo.
A liberdade do criador é a submissão da criação aos seus caprichos. Meu é o
outro de Tadeu, Tadeus é o mesmo de Tadeu.
O movimento ficcional que se expõe diante dos olhos do leitor, com o protagonista da primeira narrativa construindo na segunda, Matamoros, a obra que fora incapaz de esboçar na primeira, permite vê-la como uma forma de mise en abîme, um dos recursos de construção do texto metanarrativo: “est mise en abyme tout miroir interne réfléchissant l’ensemble du récit par réduplication simple, répétée ou spécieuse ” (Dällenbach;1977, p. 52).
Para Dällenbach o conceito significa uma modalidade reflexiva segundo a qual a obra retorna a si mesma, além de fazer sobressair a sua inteligibilidade e a estrutura formal.
Considera ainda como mise en abyme qualquer inserção que mantenha uma relação de semelhança com a obra que a contenha. Mise en abyme corresponde ao processo de inserir uma narrativa na narrativa principal ou primária, ilustrando-a, explicando-a, contradizendo-a ou a prolongando. Uma estrutura mise en abyme serve para colocar em evidência o tema central do romance: em Tu não te moves de ti, a criação literária.
Ao analisar a narrativa La tentative amoureuse, de Andre Gide, o teórico francês afirma que:
(...) c’est que le récit second, chez Gide,
réfléchit le récit premier dans la mesure où il est nécessaire, pour que la
rétroaction se produise, qu’il y ait analogie entre la situation du personnage
et celle du narrateur ou – pour dire la même chose autremente – entre le
contenu thématique du récit-cadre et celui du récit enchâssé. L’on peut donc
définir la mise en abyme gidienne comme un couplage ou un jumelage d’activités
portant sur un objet similaire ou, si l’on préfère, comme un rapport de
rapports, la relation du narrateur N à son récit R étant homologique de celle
du personnage narrateur n à son récit r . (Dällenbach, 1977,30)
Em Tu não te moves de ti a presença de
Matamoros na primeira narrativa e o surgimento de Meu na segunda formam núcleos
nos quais se condensam elementos deslocados de modo recíproco de uma narrativa
para outra num jogo especular. Jogo no qual há um movimento opositivo entre as
narrativas. Entre Tadeu e Matamoros existe uma inversão entre irrealização e
realização, repressão e liberação; assim como há inversão também entre a
atemporalidade de Matamoros e o tempo em ruínas em Axerold.
A intrincada rede formada por uma espécie de realimentação temática promovida por um processo de reduplicação em Tu não te moves de ti, ganha maior intensidade por guardar ainda profundos laços entre Matamoros e a peça O visitante, aumentando a complexidade estrutural da obra, pois tal projeção contamina as demais narrativas que a integram.
Em Matamoros sobrevivem Ana, a mãe, transformada em Haiága, e Maria, a filha. O personagem Meu reescreve o Homem, ambos, na verdade, destituídos de um nome singularizante. O último, contudo, não possui os atributos idealizados do primeiro. Desaparece a personagem Meia-Verdade, cuja intromissão no lar da família de Ana justifica o título O Visitante e permite interpretar a descoberta da inocência da mãe por Maria como vitória da dissimulação, pois o longo olhar entre o Homem, marido de Maria, e Ana, sua mãe, ao final da peça, é a confirmação das suspeitas da filha sobre a traição de ambos. Em compensação, surge Simeona, a bruxa, personagem inserida em Matamoros numa posição que lhe confere poderes especiais em relação às questões essenciais propostas pela obra e por trás da qual, num procedimento similar ao da sobreposição da voz de Sócrates no discurso de Diotima de Mantineia, em O banquete (Platão: 1987, p. 33-43), podemos encontrar a voz autoral. Se Sócrates obtém de Diotima uma teoria sobre o amor que na realidade é a dele, Simeona revela a natureza metanarrativa do texto, o continuum de histórias que se cruzam e desviam, a aliança entre poesia e tragédia na narrativa, ou seja, fornece um mapa de leitura da obra.
A terceira
peça de Hilda é apresentada pela autora como “pequena peça poética que deve ser
tratada com delicadeza e paixão” (HILST: 2008, p. 145); o poético se faz
presente não apenas no tratamento dado à ação, ocorre também por ser “escrita
na linguagem indireta do verso assumido” (PALLOTINI, 2008, p. 504). Dimensão
poética que, ao ser trazida para Matamoros, parece abandonar a delicadeza para
assumir um tensionamento em que a traição torna-se sinônimo de tragédia,
afastando-se da ingenuidade e do cinismo da peça matricial. Se o verso é
abandonado, sobrevive numa linguagem impregnada por um andamento poético, como
pode ser verificado no ritmo do primeiro parágrafo de Matamoros, presente em
grande parte do texto: “Cheguei aqui nuns outubros / de um ano que não sei, /
não estava velha nem estou, / talvez jamais ficarei / porque faz-se há muito
tempo / nos adentros / importante saber e sentimento” (HILST; 2004, p. 61).
Estruturas paratáticas e anafóricas, intercaladas por inúmeras frases
interrogativas, modulam uma dimensão trágica, como se fosse possível ao
discurso em primeira pessoa de Matamoros reconstruir com palavras a cena de seu
infortúnio e expô-la ao narratário.
Simeona
abre a perspectiva de diálogo com as formas clássicas da literatura,
reproduzindo a técnica de afastamento iluminante da tragédia. Relaciona-se não
apenas a Diotima, inclusão que oculta retoricamente Sócrates para que ele possa
manifestar livremente seus pensamentos, mas a adivinhos como Tirésias, o cego
que vê o destino dos humanos. Excêntricas, as criaturas afastadas, à margem,
são aquelas dotadas da propriedade de ler os caminhos alheios.
Hölderlin,
ao analisar a estrutura das tragédias Édipo
Rei e Antígona, escritas por
Sófocles, observou a importância da intervenção de Tirésias para o
estabelecimento do ritmo das duas partes ligadas por ela, que corresponderia justamente
a uma interrupção antirrítmica por ele denominada “cesura”, alargando um
conceito restrito à versificação, ao observar a sua importância como um
marcador do andamento rítmico da tragédia grega.
Com isso, na
consecução rítmica das representações em que o transporte [grifo do autor] se apresenta, torna-se necessário o que
na métrica se chama cesura [grifo do
autor], a palavra pura, a interrupção anti-rítmica, a fim de ir ao encontro da
mudança torrencial [reissend] das representações, em seu ápice [Summum], de tal
maneira que então apareça não mais a alternância das representações, mas a
própria representação. (HÖLDERLIN: 2004, p. 68-69)
A
cesura corresponde a um momento de suspensão, a um hiato no plano das ações e à
irrupção da palavra pura, um vazio mediante o qual o sentido da tragédia se
torna manifesto e a mímesis se anula
pelo desnudamento do processo criativo. A ruptura de Simeona em Matamoros
produz o intervalo, a fenda em que a criação se reproduz ao relançar ad infinitum a linguagem no vazio
originário, ao enunciar a palavra pura, destituída de apêndices significativos.
No
meio da narrativa central do livro, no topo da trajetória da protagonista, a
voz de Simeona suspende as ações ao assumir-se como forma reflexiva na qual o
texto ficcionaliza seu próprio pensamento. É nessa brecha que os horizontes
ganham mobilidade e as margens apagam a fixidez de linhas para desenharem o
caráter intercambiante dos territórios. Desaparece, assim, o caminho sobre
espaços demarcados, sobre a solidez e fixidez de formas correspondentes a
conteúdos. A palavra pura, parada rítmica em que o próprio ritmo é o que vem à
tona, anula distinções, limites e propriedades, fundindo na enunciação fluxo,
devir e criação.
Para
Hölderlin a cesura na obra trágica pode dar origem a dois ritmos diferentes:
Já que o ritmo das
representações é tal que, em uma rapidez excêntrica, as primeiras são mais
arrastadas pelas seguintes, então a cesura, ou interrupção antirrítmica,
precisa ficar para a frente, de modo que a primeira metade esteja como que
protegida contra a segunda, o equilíbrio, exatamente porque a segunda metade é
originalmente mais rápida e parece pesar mais, pende mais de trás para o início,
por causa do efeito contrário que a cesura tem. Se o ritmo das representações é
tal que as seguinte são mais pressionadas pelas iniciais, a cesura, então, se
encontrará mais para o fim, porque é o fim que precisa ser como que protegido
do começo, e por conseguinte o equilíbrio penderá mais para o fim, porque a
primeira metade se estende mais, de forma que o equilíbrio só surge mais tarde.
(HÖLDERLIN: 2008, p. 69)
Para
o autor de A morte de Empédocles, a
primeira possibilidade é exemplificada pela fala de Tirésias em Édipo Rei, de Sófocles, inserida após a
primeira intervenção do coro e que sintetiza a tragédia, expondo seu núcleo: o
assassinato do pai, a relação incestuosa com a mãe, a cegueira e o banimento do
herói (Sófocles: 1980, p. 72-81); o segundo caso tem sua melhor realização na
fala de Tirésias em outra tragédia de Sófocles, Antígona. A protagonista é presa por Creonte ao providenciar um
túmulo para Polinice, seu irmão, insepulto por determinação real. A fala de
Tirésias (Sófocles: s/d, p. 99-102), todavia, não surte efeito, logo após a sua
inserção se dá o desfecho da tragédia: o arrependimento de Creonte não evita o
suicídio de seu filho, Hémon, e de sua esposa, Eurídice, além da morte de
Antígona.
Em
Matamoros aparentemente a inclusão de Simeona ocorre no meio da narrativa,
fugindo assim à distinção hölderliana, toda ela baseada na criação de um
mecanismo regulador do equilíbrio entre as ações, instrumento dispensável em
qualquer outro texto em que haja ação trágica.
A
posição de Simeona, no entanto, é deslocada pela constatação de que o epílogo
da ação dramática acontece sob a forma de elipse em Matamoros, por já ter sido
antecipada na narrativa anterior, na qual a filha de Haiága aparece como
habitante da casa dos velhos no tempo em que nela ainda existia a morte. O seu
fim, no mesmo espaço em que Tadeu circula, é a concretização da profecia de
Simeona, portanto trata-se do desfecho trágico da segunda narrativa. O caráter
trágico de que se reveste o suicídio de Matamoros, predeterminado de antemão
pela realidade ilusória de seu caminho irrealizável, não encerra totalmente a
narrrativa, que permanece aberta no destino ignorado de Haiága e seu filho e no
depósito de segredos da casa dos velhos: “não nos basta o segredo que temos no
porão? e tudo isso da Matamoros foi nos tempos antigos” (HILST: 2004, p.
50).
Desse
modo, ao remeter o final para outro texto, amplificando o tema da criação e
permitindo a transformação do fim em seu próprio começo, pois é ao ouvir o
relato sobre a morte de Matamoros que Tadeu transforma-se em Tadeus, afirma-se
o inacabamento da obra, a sua filiação ao aberto. Esse final que se prolonga ao
encaixar-se em outra narrativa é o que permite constatar que a cesura
assemelha-se à da interrupção antirrítmica em Édipo Rei, de acordo com a visão de Hölderlin.
Vale
observar que o caráter narrativo do texto não invalida a observação do fato de
que, em sua constituição, invade e apropria-se de procedimentos pertencentes a
gêneros literários distintos. É próprio da natureza hilstiana a incorporação de
elementos díspares, oriundos de multiplicidade genérica e das mais diversas
formas, literárias ou não. Os textos da prosa hilstina desregulam os marcos
fronteiriços, fazem contrabando genérico, pervertem divisões canônicas e
instituem uma babel de formas por trás da qual é possível enxergar muitas
vezes, como ocorre em Tu não te moves de
ti, a sobrevivência da forma do romance.
A
incorporação de marcas do trágico em Matamoros surpreendentemente não resulta da
sobrevivência de componentes dramáticos da peça O visitante, muito mais próxima a uma alegoria moralizantte do que
de qualquer semelhança com as formas da tragédia. É antes um movimento
deliberado de dar ressonância universal ao tema de que trata: a aliança entre
criação e negação no gesto originário da arte.
O
outro lado da fantasia
A
morte de Matamoros, suprimida na história homônima, é lembrada por Extenso,
personagem da casa dos velhos da primeira narrativa: “verdade é que
apunhalou-se, enterrou no meio das pernas aquela faca” (HILST: 2004, p. 50).
Morte impregnada de profundo simbolismo, o que se mata excede o corpo da morta,
volta-se para a própria criação. A faca introduzida no espaço corporal
destinado a gerar vida expressa uma negação completa da existência. Falo
negativo, simboliza a revolta contra a fertilidade da outra, a própria mãe.
Mata-se por contraste, mata a falta na tentativa de que o sangue contamine e
apodreça uma felicidade que vampiriza o seu sonho, que destrua a aliança de fraude
e furto na plenitude amorosa de Haiága e Meu. Mata-se, também, o desenho da
fantasia como dimensão de um estado ideal de felicidade, pois o gesto da facada
uterina é a supressão de Meu personagem e de meu como referência a um projeto
de individualidade, mata-se de modo mais intenso assim, regredindo-se ao lugar
do nascimento para anulá-lo e fazer evanescer a vida como possessão de si
mesmo. A morte pelas próprias mãos é o processo de purificação da falta
trágica, representa a volta aos limites rompidos pela desmesura.
Fim
e começo embaralham-se no estranho território da casa dos velhos, pois é sob a
sombra das palavras que exibem a memória do sangue de Matamoros que Tadeu, o
homem bifronte da estória homônima, atravessa a fronteira entre as duas narrativas:
Diálogo fervilhante o
que eu ouvia, rumorejo casto e de repente passional artéria, as rolas de luto,
o sangue de alguém se fazendo em dimensão alheia, Matamoros se recompondo na
visão de outro, de mim, Tadeu, o fundo ouvido sugando o incompossível ruído que
faria o punhal cravado onde? (HILST: 2004, p. 51)
Percebe-se,
assim, que a casa dos velhos corresponde a um espaço de extrema riqueza para a
compreensão de Tu não te moves de ti.
A tríplice narrativa parece conter uma dimensão móvel, modificando o caminho da
leitura pelo jogo de relações entre as suas partes. A história de Matamoros
instala-se topicamente no espaço indeterminado dessa casa misteriosa: “não nos
basta o segredo que temos no porão? e tudo isso da Matamoros foi nos tempos
antigos quando aqui se morria” (HILST: 2004, p. 50).
Também
Axerold, o protagonista da última narrativa, faz uma viagem de regresso ao
território da infância: “movo-me imóvel em direção à aldeia onde nasci, o
existir de Hiaága minha tia, com seus cactus cizais, seu cogito arrumado de
duros verdolengos, (...)” (HILST: 2004, 134). Cruzam-se, portanto, no terreno
do indizível Tadeu, Matamorros e Axerold, criaturas constituídas da matéria
informe com a qual se produz as narrativas.
A
casa dos velhos revela-se um núcleo proliferador de histórias, nela cruzam-se
fronteiras diversas, a estranheza de sua dimensão tópica corresponde ao ato de
resguardo da indecibilidade da obra, a opacidade de seu terreno é a
intraduzibilidade da criação a um discurso normativo e iluminador de seus
caminhos.
As
palavras sibilinas da vidente constroem um sentido oculto para o enigmático
Meu, ao mesmo tempo em que demarcam o relato de Matamoros como um diálogo
negativo com a historia anterior. A relação antinômica entre razão e fantasia
adquire nitidez no corpo do texto.
O lugar da poesia, ao
contrário do que fazia parecer a primeira novela, já não é a alegria ou o
transporte amoroso, mas o terror e a piedade trágicos, combinados ou submetidos
à ideia cristã dolorosa da expiação, pois, no clima de suspeitas e acusações
que se cria, alguém deve ser culpado pelo paraíso perdido. Meu, espécie de
emanação poética ou pura ideia do ex-empresário Tadeu, é incapaz de sustentar o
sublime a que aspira, ao menos enquanto felicidade ou êxtase: a simples
aspiração, suposta na poesia ou no desejo, basta para a instauração do terror e
da miséria no cerne da existência. (PÉCORA, 2007, p. 7)
As
palavras da adivinha reforçam a impressão inicial de Matamoros sobre Meu: “era
como se fosse o reverso do belo sem deixar de sê-lo” (HILST: 2004, p. 66) O que
surge do outro lado de Tadeu é algo que não possui vida em si, é projeção da
vida de um outro, revestida de fulgurante beleza, cuja luz e deslumbramento
correspondem à fuga a uma existência marcada pela penumbra, pela falsificação e
pelo vazio. De acordo com Simeona, Meu corresponde também a um sonho de
Matamoros, do qual ela deve acordar a fim de evitar consequências nefastas,
pois a casa da aldeia onde a tragédia arma o seu palco já foi localizada: “ai,
Maria, penso que é tua a casa onde sangue se via, mulher e cadela há de morrer
e parir”. (HILST: 2004, p. 91)
Por
igualar-se a verdade à loucura na fala de Simeona, as advertências não podem
alterar o rumo dos acontecimentos. Matamoros, ao atribuir às palavras da
vidente um tom carregado de exagero, passa a sentir uma espécie de alívio.
Fascinada pela força de uma paixão que nega, em sua realidade carnal, todo o
discurso de Simeona, afasta do horizonte a ideia de habitar uma dimensão
onírica, além de se livrar das suspeitas sobre a figura materna, lembrando o
fato de a bruxa não mencionar o nome de Haiága uma só vez.
Embora
a protagonista revele a constância, em noites de carência, de um sonho no qual
construía, a partir de uma ideia confusa, de modo lento e incompleto, um rosto
que a amasse, acrescentando-lhe um corpo, acredita na impossibilidade de Meu
ser fruto desse mecanismo, atribuindo-o a um presente de Deus, na verdade,
dádiva e castigo, uma vez que tanto promove o êxtase quanto o desespero: “Tão
separada me vejo do Divino, tão separada porque se fosse bondoso o lá de cima
sei que não me daria contento e espinho” (HILST: 2004, 103).
De
volta a casa, consolada pela mãe do sofrimento provocado pelo encontro com a
feiticeira e com duas irmãs – Biona e Rufina de Deus – que a insultaram no meio
do caminho, lançando-lhe acusações sobre sua anterior promiscuidade sexual, não
pode deixar de ser novamente assaltada por toda carga de suspeita ao ouvir as
palavras carregadas de ambiguidade com que Haiága faz referência à relação
entre as duas e Meu: “é homem desta casa, Maria, e só há de pertencer a nós
duas, fez uma pausa, riu, e antes que eu pudesse dizer mãe, é homem meu, me
disse branda: o homem de minha filha é filho meu.” (HILTS: 2004, p. 106) Entre
a pausa e a explicação guarda-se a ideia de posse compartilhada, de usufruto
carnal, de um corpo repartido clandestinamente pela voracidade de duas mulheres
unidas por laços refratários a essa comunhão sexual.
O
caráter ambíguo desborda do campo das palavras para tingir de suspeitas as
atitudes de Haiága. Mais do que intenções maternais, o ato de preparar uma
refeição especial para Meu, a graça e a novidade do arranjo dos pratos, tudo
contribui para dar ressonâncias maldosas à justificativa ao pedido feito para
que Matamoros assumisse à responsabilidade pela obra: “Porque ao homem lhe
apetece comer o que faz a própria mulher” (HILST: 2004, p. 106).
A
progressiva usurpação de funções pertinentes à filha, como o cuidado em acordar
cedo para cuidar de Meu e o capricho no preparo de uma refeição especial para
ele, um cordeiro ornamentado com flores, assume a máxima intensidade por
intermédio da surpreendente confissão de Haiága: “à espera de um filho, minha
filha, essa é a novidade” (HILST: 2004, p. 107).
A
maldição de Simeona ecoa no espírito de Matamoros, não mais contida em surda
revolta contra a mãe, a mulher-cadela, a prostitutíssima, a velha puta de seus
pensamentos, ela avança sobre a mãe que se defende com uso de insólito e
ambíguo argumento:
nunca toquei o homem
e se estou cheia não foi homem de carne, foi desejo obrado do divino, juro-te
que não toquei e grito como se o próprio encantado te gritasse, estufa-se no
milagre minha velha barriga, estufam-se os peitos de leite, estou cheia mas
limpa, homem nenhum a não ser aquele que te colocou em mim. (HILST: 2004, p.
108)
Surpreendentemente,
Matamoros acredita no que ouve, atribuindo o estado da mãe à uma doença advinda
da solidão causada pela perda da filha para um estranho, comparando o seu
sofrimento ao de Córdula, uma velha cadela que sofria de falsa gravidez. Na
comparação sobrevive a homologia entre Haiága e cadela contida na previsão de
Simeona, a ironia evidente não é devida à narradora, antes pode ser registrada
como uma interferência do autor implícito. Parece esquecer diversas observações
feitas anteriormente por ela e pelas mulheres da aldeia sobre as alterações
físicas sofridas pelo corpo de Haiága, como a intumescência dos seios e o
crescimento da barriga, além de deixar passar em branco a cruel possibilidade
de leitura do final da fala como confissão cifrada da origem incestuosa da
protagonista, sobre quem não existe nenhuma menção explícita à figura paterna
no texto.
A
filha recolhe momentaneamente a rede envenenada de palavras de dor e
ressentimento. Num acesso de riso, chega a se imaginar feliz ao encontrar em
Haiága semelhança com a mãe de Jesus. O dúbio desejo materno de ter um filho
concebido a semelhança de Meu, vontade que tanto pode ser expressão de
admiração quanto confissão de paternidade, desperta tímida reação de Matamoros,
neutralizada por alegada intenção protetora da mãe, preocupada em livrar a
filha de um ato que, de tão doloroso, só deveria ser apropriado à madurez, numa
aproximação entre gravidez e morte.
É de
Haiága toda a iniciativa. Incumbe a filha de revelar a notícia da gravidez a
Meu, ato mais próximo a um gesto dissimulado do que resultado de uma natural
timidez. Combina encobrir a origem dos ferimentos causados pela filha, para
isso monta, com a aquiescência da protagonista, a versão de um acidente com os
limoeiros. Exige ainda a manutenção de completo sigilo: “que mais ninguém nesta
aldeia deste meu novo estado tome conhecimento, dois meses antes do filho
nascer vou a casa de nossa prima Heredera” (HILST: 2004, p. 112). Na interdição
prescrita, gravidez e ato proibido misturam as suas linhas, pois a novidade
deve ser escondida de todos, como se fosse um delito ou um pecado. A referência
à casa de Heredera remete à aldeia de Matamoros no mesmo território da casa dos
velhos em Tadeu.
Incumbida
de dar a notícia a Meu, Matamoros estranha a reação do cônjuge à notícia da
gravidez de Haiága. O homem-anjo tomou-a de modo mecânico, possuindo-a de
maneira tão diferente da habitual, sem carícias, sem entrega, escondendo o
rosto em sua nuca para que ela não o visse, após sussurrar-lhe para esquecer as
fantasias maternas, pois é da natureza das mães sonhar muitas loucuras. A
estranheza do ato amoroso leva Matamoros a chamá-lo pela primeira e única vez
de Tadeus.
A
sugestão de incesto retorna ao final da narrativa, numa aceitação aparente do
triângulo amoroso promovida pelo estado de embriaguez em que Matamoros imerge.
Ela, ao escutar o canto afinado de Meu e Haiága e, ao perceber tanta afinação,
tanto entendimento, pode declarar uma verdade-invento: “desses dois à minha
frente gorgeando vi-me filha, Matamoros Maria, filha de Haiága e de Meu,
deita-se Maria com o pai que ao mesmo tempo é de Haiága marido-rei” (HILST:
2004, p. 122-23).
Entre
Tadeu e Matamoros ocorre um jogo de criação e recriação. Se a
protagonista-narradora concretiza a vontade de potência anulada na história
inicial, pela inserção de Tadeu em um real que se dá como simulacro, num viver
anêmico e protocolar, pode realizá-lo na irrealidade que não significa a
existência do não real, mas a indistinção entre sonho e verdade: Tadeus.
Referências
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1998.
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Georg Wilhelm Friedrich. Estética: a ideia e o ideal: Estética:
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ou o ideal. Trad. Orlando Vitorino. 5ª. ed. São Paulo: Nova
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_____. Teatro
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HÖLDERLIN,
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Tradução
Anna Luiza Andrade Coli et alii. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008.
PALLOTTINI,
Renata. “Posfácio”. In HILST, Hilda. Teatro completo. São Paulo:
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Acesso em: 26 fev. 2007.
SOUZA,
Raquel Cristina de Souza. “ ‘O visitante’ revisitado: exercícios autotextuais
em
Hilda Hilst”. In: Diadorim: Revista de Estudos Linguísticas e Literários,
n° 1,
Rio
de Janeiro: UFRJ, 2006
*
Trabalho publicado na revista Garrafa nº 20, jan.-abr./2010, do Programa de
Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ (http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/index_revistagarrafa.htm)
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