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Contos d’escárnio. Textos grotescos, Hilda Hilst


Hilst: exílio da oikos *


Contos d’escárnio. Textos grotescos é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos, de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme. As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem céu., do mal-estar da existência, da privação, cujo maior símbolo é a presença de um deus ausente.

Crasso, o narrador-personagem, na autoapresentação e justificativa realizadas nas primeiras páginas da narrativa, revela ter ficado órfão nos seus primeiros meses de vida: a mãe falecera logo após ele receber o nome de batismo e o pai morreu um mês depois em um bordel. O desamparo surge, dessa forma, como componente fundamental da sua existência. Corresponde a um não-habitar, a uma oikos deslocada, à intrusão em outra casa, no centro de relações que não são aquelas que formariam o seu espaço, a sua identidade, pois sua inserção na órbita do tio Vlad equivale ao desterro do mundo paterno, a uma condenação à vida no exílio.

A cena inicial contém ainda uma das características mais recorrentes na obra da autora: a preocupação com a escolha e a etimologia dos nomes próprios, extraídos geralmente de fontes culturais clássicas. Em outros momentos a autora opta por nomes raros, de ressonâncias herméticas. De qualquer maneira, os nomes são colhidos fora da contemporaneidade, ensaiam uma linha de continuidade com o passado, seja histórico, seja mítico. Esse processo de nomeação de personagens institui uma atmosfera que ajuda a inserir o universo obsceno contemporâneo numa linhagem dotada de uma espécie de nobreza cultural. Um dos recursos pelos quais a autora escapa ao aprisionamento nos marcos estreitos da pornografia é justamente essa sofisticada preocupação linguística que se sobrepõe às sucessivas eclosões de vulgaridade e linguagem chula. O fascínio e a fixação por supostas propriedades inerentes aos nomes pode ser constatado na referência a uma das numerosas amantes de Crasso:

             Ah, tudo que eu fiz com e por Otávia. Ela tinha trinta anos e todas as sugestões                 
            que o nome carrega: altivez, um pouco de fúria, cabelos negros, olhos grandes,
             escuros, e dizer Otávia na hora do gozo é como gozar com mulher e ao mesmo
             tempo com general romano, com rapagão e com Otávia inteira mulher de
             general. (HILST: 2002, 15)


A escolha do nome do narrador revela, ainda, outra marca do estilo hilstiano: a incessante referência a autores, livros e personagens (reais ou fictícios) do mundo da arte. Assim, apenas nas duas páginas iniciais, fora a escolha do próprio narrador, existem referências à mania (da mãe de Crasso) de ler História das Civilizações, à paixão por Vladimir Horowitz, além da citação de ...E o vento levou, Rebeca, Os sertões e Ana Kariênina. Aqui pode ser observado mais um recurso que subtrai ao caráter pornográfico posição hegemônica na construção da prosa hilstiana. As referências ao universo mais alto da literatura, a crítica a determinados autores, a eleição de outros, a discussão de ideias e de trabalhos dos universos artístico, filosófico e científico não são recursos apropriados ao universo de revelação do interdito com intenção de prazer não estético que é o caráter mais pertinente ao campo pornográfico. O pornográfico, em Hilda Hilst, encontra-se a serviço de uma estética do choque, da ruptura e do absurdo.

Crasso, alter ego de Hilda Hilst, expõe as razões que o levam a produzir o texto:

             Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo
             que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito
             pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E
             os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem
             em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é
             que não gosto de colocar fatos numa seqüência ortodoxa, arrumada. Os jornais
             estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Então não vou escrever um
             romance como ...E o Vento Levou ou Rebeca, Os Sertões e Ana Karenina então
             nem se fala. Os verbos chineses não possuem tempo. Eu também não. (HILST:
             2002, 14)

A narrativa de Crasso surge motivada pela proliferação de textos. O excesso de livros é percebido como acúmulo de lixo. É a produção de resíduos textuais que justifica a obra, fruto, portanto, de um desequilíbrio ecológico, uma intervenção nociva do ser humano na natureza. Texto e pornografia surgem como formas de manifestação do desamparo que acabam fundidas em uma só forma – a arte – com a qual se busca freneticamente prazer, sentido e resposta.

A segunda sequência traz as personagens Otávia e Lina, esta, poetisa de voo limitado. O estilo de Hilda adquire em muitas passagens o caráter descritivo apropriado aos textos pornográficos, nos quais as minúcias realistas suprem o leitor da excitação necessária ao prazer e alívio que tais narrativas prometem. Paradoxalmente, Hilst não cumpre o acordo tácito com o leitor, pois o texto adquire conformações diversas do hiper-realismo sexual esperado e mergulha, incessantemente, em reflexões, digressões e cortes narrativos que impedem a sua redução a qualquer grau de previsibilidade. Mesmo quando descreve cenas em que o sexo é tratado de modo central, o narrador opera com desvios que despotencializam a crueza da expressão. É o que acontece na cena descrita abaixo:

             Otávia por exemplo gostava de apanhar. A primeira vez que a “fodi” (ou que
             “fodia-a” ou que “fui fodê-la”, é melhor?) enganei-me na tradução de seu breve
             texto. Ela me disse: me dá uma surra. Entendi que era uma surra de pau. E fui
             metendo, me aguentando longamente para não esporrar, pensando na mãe
             morta, no pai morto, na missa de sétimo dia do tio Vlad, que depois eu conto
             como ele morreu, e nesse todo patético deprimente que é morte e doença. Aí ela
             me interrompe a meditação ativa, dura e disciplinada.
             surra, amor, eu disse. Surra, meu bem.
             Então entendi. Meti-lhe a mão na cara quatro, cinco vezes. (HILST: 2002, 16      
             17)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          
O foco sobre o caráter obsceno do trecho é desviado mediante a irrupção de uma preocupação de natureza linguística nas duas primeiras linhas. O desvio é acentuado pelo efeito humorístico provocado pela ambiguidade da palavra “surra”, na dupla função de submissão de alguém à intensa atividade sexual ou de sucessão de pancadas violentas em determinado indivíduo. Intensifica-se, finalmente, com o privilégio concedido à exibição em primeiro plano dos pensamentos do protagonista em detrimento da ação física, cujo detalhamento corresponderia à expectativa apropriada ao texto obsceno. Vale ressaltar que “a meditação ativa, dura e disciplinada” é constituída por uma reflexão sobre aspectos negativos, formando um plano antitético em relação à entrega a todo o tipo de prazer sexual: as ideias de Crasso concentram-se em torno de morte, dor, doença e sofrimento.

A atividade sexual também surge relacionada a um processo de animalização, à componente de bestialidade tão presente ao longo da obra da autora. A animalização não apenas representa a dimensão primária, vital e instintiva da sexualidade. Ela simboliza o esvaziamento do ser, destituído de sua própria humanidade, reduzido a uma forma viva que se confunde com qualquer outra. Assim, o auge do perversão prazerosa proporcionada por Otávia é explicitado numa comparação bastante reveladora: “Como se você estivesse fodendo uma onça-mulher filhote”. (HILST: 2002, 17)

O próximo bloco narrativo, dedicado a mais duas amantes, formula uma crítica a um comportamento típico do machismo: a desvalorização da inteligência como um atributo feminino, razão pela qual Crasso pode afirmar: “Quando eram cultas, simplesmente me enojavam” (HILST: 2002, 18). Uma das amantes, Flora, era chata, culta (citava Lucrécio na cama) e extorquia dinheiro de Crasso. A outra, Josete, tinha gosto exótico na comida e no sexo, além de possuir mania de música. Todavia, sua importância para a narrativa consiste na obsessão por Ezra Pound. É essa paixão que fornece a Crasso, alter ego de Hilda Hilst, a oportunidade de criticar um dos ícones da poesia do século passado. Após manifestar repulsa à proposta estética do poeta, denominando-o repelente, fascistoide, engodo e invenção de letrados pedantescos, incorpora à obra trecho extraído da obra poundiana, intitulado “Do Caos à Ordem”, canto XV, composição construída em linguagem coprológica. A transcrição do texto, considerado lixo por Crasso-HH, não é suficiente. É necessário o recurso à crueldade: os versos de Pound estão tatuados em redor do ânus de Josete. A poesia do autor de Cantos mais do que negada, é ultrajada, relegada a lixo, escrita imunda, sem valor.

A referência direta ao leitor é utilizada ao longo da obra, como pode ser demonstrado em: “E agora, falando em igreja, lembrei-me que ainda não lhes contei como é que foi a morte do tio Vlad” (HILST: 2002, 23) ou em “Antes de falar da igreja vou falar do bordel a 30 quilômetros da Gota do Touro”. (HILST: 2002, 27) As cenas e os contos vão surgindo através de um processo caótico, já apontado no início pelo próprio narrador, frequentemente com a quebra do ritmo por incursões do narrador que ora antecipa histórias, ora intercala reflexões, ora muda a forma discursiva, ora ausenta-se para logo retornar, ora surge sob nome diferente. Esse caráter proteico permitiria, com mais propriedade, considerá-lo um antinarrador (1).

Em meio às putarias, o narrador encontra tempo para ir à igreja, lugar que o conduz a discorrer sobre religião e a demonstrar familiaridade com a história do cristianismo, através de referências à perseguição que os católicos moveram aos cátaros no século XII. A presença na igreja não denota expressão de fé, pois dá vazão a uma crítica virulenta ao apego da instituição aos bens materiais. Na igreja encontra Clódia, uma nova amante.

O narrador faz referência aos autores lidos na mocidade, Spinoza, Kierkegaard, Keats, Yeats, Dante, ao mesmo tempo em que reconhece estar em um processo de decadência.

A obsessiva preocupação com o vocabulário parece na verdade um trabalho artesanal de demolição do tom pornográfico da narrativa, construída, num amálgama de intenção irônica e realização metalinguística. Surge, de modo inesperado, por meio de palavras consideradas inadequadas ao contexto lascivo em que são inseridas, como no momento em que sofre atração por Clódia:

             Meu pau fremiu (essa frase aí é uma sequela minha por ter lido antanho o D. H.
             Lawrence). Digo talvez meu pau estremeceu? Meu pau agitou-se? Meu pau
             levantou a cabeça? Esse negócio de escrever é penoso. É preciso definir com
             clareza, movimento e emoção. E o estremecer do pau é indefinível. Dizer um
             arrepio do pau não é bom. Fremir é pedantesco. Eu devo ter lido uma má
             tradução do Lawrence, Porque está aqui no dicionário: fremir (do latim fremere)
             ter rumor surdo e áspero. Dão um exemplo: “Os velozes vagões fremiam”.
             Nada a ver com o pau. Depois, sinônimos: bramir, rugir, gemer, bramar. Crê,
             como dizia o padre tutor do Tavim, nada mesmo a ver com o pau. Meu pau
             vibrou, meu pau teve contrações espasmódicas? Nem pensar. Então, meu pau
             aquilo. O leitor entendeu. (HILST: 2002, 32)


Apesar de esgotar todas as possibilidades de expressão, não consegue descobrir um termo que traduza plenamente aquilo que pretende dizer. Resta apelar ao discernimento do leitor.

O jogo vocabular deixa transparecer o rico universo cultural de Crasso. Clódia, a museóloga e pintora de vaginas, e Crasso são nomes retirados do mundo romano. Clódia foi o grande amor de Catulo, um dos grandes poetas de Roma lido por Crasso aos dezoito anos.

A referência ao universo cultural que o nome Clódia evoca é pretexto para o surgimento de uma peça de oratória de caráter erótico e solene, como se fosse escrita para ser proferida por um nobre tribuno romano.

             Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando
             sempre abaixo de vossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas,
             lolitas-velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha
             vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de
             marfim, plantados nas gengivas luzentes! Cáustica, Clódia atravessa ruas,
             avenidas e brilhosas calçadas. Ó, pelos deuses, adentrai vossas urnas de basalto
             porque a leoa ronda vossas salas e quartos! Quer lamber-vos a cona, quer
             adestrar caralhos, quer o néctar augusto de vagina e falos! Centuriões, moçoilos,
             guerreiros, senadores, atentai! Uma leoa persegue tudo o que é vivo mole incha
             e cresce! Trançai vossas pernas, trançai vossas mãos atentas sobre as partes
             pudendas! Não temais a vergonha de andar pelas ruas em torcidas posturas, pois
             Clódia está nas ruas! (HILST: 2002, 36-37)


As reflexões linguísticas multiplicam-se por toda a narrativa de Contos d’escárnio. Clódia é denominada “leoa dos plátanos” por conta da sonoridade da palavra, numa demonstração da força que os jogos com os significantes ganham nos textos hilstianos. A mesma personagem também é caracterizada pelo fato de falar diminutivos em alemão, marca linguística por trás da qual Hilda Hilst esconde um de próprios atributos.

A narrativa, a partir de certo momento, adquire a conformação de um espelho no qual Crasso, o narrador, transforma-se em Hans Haeckel. Se o primeiro dá origem ao texto escabroso, lascivo, obsceno, o segundo correponde à figura do escritor sério, ignorado pela crítica, invejado por outros escritores, comprometido até a raiz com a literatura. Em ambos, no entanto, é visível a projeção da imagem de Hilda Hilst, como pode ser comprovado no diálogo entre as duas personagens:

             Hans, vamos escrever a quatro mãos uma história pornéia, vamos inventar uma
             pornocracia, Brasil meu caro, vamos pombear os passos de Clódia e exaltar a
             terra dos pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis.
             não posso. Literatura para mim é paixão. Verdade. Conhecimento. (HILST:
             2002, 41)

A seriedade do escritor em um ambiente hostil é uma espécie de suicídio, por isso Hans Haeckel mata-se logo após ouvir a proposta de Crasso. Sob a forma dialógica surge o impasse hilstiano, o insulamento de uma obra alimentada por paixão, verdade e conhecimento e o desejo de reconhecimento.

A formulação de uma história porneia pode ser entendida como uma reação crítica e irônica à vulgarização de uma literatura de baixo nível, baseada em recursos técnicos primários e limitados, sem qualquer preocupação com qualidade, verdade e conhecimento, cuja maior representante é o best-seller. Paradoxalmente, HH busca de modo deliberado na mais desprezada das literaturas de consumo, a pornográfica, esvaziada de intencionalidade estética, o alvo para a denúncia e a fonte de uma estética transgressora.

A concepção estética traz subjacente uma crítica política, fato observado por um dos maiores estudiosos de sua obra, Alcir Pécora:

             Há uma analogia evidente entre, de um lado, a negatividade produtiva em Hilda
             Hilst face à indústria cultural e, de outro, a adoção de um registro obsceno face
             às circunstâncias do Brasil, que ela trata como país bandalho por antonomásia.
             O Brasil, segundo Hilda Hilst, é uma terra devastada onde o poder injusto e
             ilegítimo pactua com a a venalidade mais mesquinha no meio da celebração da
             malandragem e do triunfalismo nacional-popular-carnavalizante. (PÉCORA:
             2005, 11)


Isso significa que Hilda Hilst condena o exercício do poder por um tipo de bandidagem que se volta contra a prática de liberdade e lucidez representada, em seu estado mais profundo, pela literatura. Em uma realidade onde predominam a vulgaridade, a alienação completa, a velhacaria política e social, resta tão somente a criação de um narrador entregue ao desengano, ao delírio, à loucura ou à morte. O texto hilstiano, de acordo com a ótica de Alcir Pécora, formula, dessa maneira, uma síntese amplificada de todas as obscenidades dissimuladas, institucionalizadas, normalizadas e naturalizadas na paisagem brasileira e humana.

Aponta ainda o ensaísta para um aspecto moralístico inerente à crítica hilstiana:

             Para Hilda Hilst, em terra de pornógrafos, o que cabe ao escritor sério é
             produzir a evidência de uma pornocracia, isto é, da violência hegemônica da
             identidade bandalha. Pode-se pensar, pois, nesses textos obscenos como
             exercícios de prosa satírica nos quais a construção de tipos mistos e
             heterogêneos, que definem o vicioso, o execrável e o repugnante, está
             fortemente vinculada a uma moralística, desde que se dê ao termo o seu sentido
             rochefoucauldiano de exercício bem-humorado de destruição sistemática das
             afetações ou autoindulgências desonestas compartilhadas civilmente.
             (PÉCORA: 2005, 12)

Após o diálogo entre Crasso e Hans Haeckel, surge um pequeno conto (o narrador aconselha o leitor a evitar a leitura, caso queira continuar vivo), denominado Lisa, que trata de um caso de zoofilia entre uma macaca (Lisa) e o seu anônimo dono, ambientado em uma pensão miserável, apesar do nome — Pensão Palácio.

O texto, depois da breve incorporação do conto de outro narrador, volta à profusão de cenas grotescas. Dessa vez Clódia vai presa por atentado ao pudor devido à ideia inusitada de espalhar pinturas de falos em plena rua, obsessão que acaba levando-a ao hospício. Lá recebe textos de natureza diversa: receita, conto e teatro.

O texto de receitas, intitulado “Pequenas sugestões e receitas de Espanto-Antitédio para senhores e donas de casa” , apresenta construções de puro nonsense, algumas concebidas com crueldade, fórmulas de simpatias, receitas reveladoras de leituras científicas da autora, todas eivadas de uma ironia ferina. A última receita traz crítica explícita à literatura valorizada pelo mercado, verdadeiro leit motif em sua obra: “Recolha num vidro de boca larga um pouco do ar de Cubatão e um traque do seu nenê. Compre uma ‘Bicicleta Azul’ e adentre-se algum tempo nas ‘Brumas de Avalon’. É uma boa receita se você quiser ser um escritor vendável”. (HILST: 2002, 54)

Três pequenas peças teatrais são inseridas no corpo da narrativa. A primeira tem por título “Teatrinho nota 0, no. 1” e sua autoria é atribuída a Zumzum Xeque Pir. As personagens são paródias que acentuam o caráter de perversão das referências culturais da literatura ocidental, chegando uma delas a ser nomeada por um expediente de manifesto mau gosto – Bãocu (corruptela de Banquo, general de Macbeth; este, por sinal, reduzido a Madbed). A cena final ironiza os estereótipos de um país em que se escorraçam os letrados e o monstro das letras: o palco fica em festa com mulatas, seleção de futebol, samba e música frenética.

O segundo teatrinho, um diálogo entre pai e filho, denomina-se “Teatrinho nota 0, no. 2”, de autoria de Nenê Casca Grossa. Trata-se de uma violenta metáfora da dominação masculina. A animalização da mulher, metaforizada como ursa, deixa à mostra a condição inferior que lhe é imposta pela estrutura patriarcal da sociedade brasileira.

A terceira peça, constituída por um diálogo entre dois jovens — Sonsin e Nenéca — é intitulada “Teatrinho nota 0, no. 3”, atribuída a Sonson Pentelin. No texto, entretanto, aparece o título “O Pétala”. A cena é dominada por uma discussão sobre o tipo de linguagem e situação a ser encenada e como encená-la. Fato que dá margem a uma observação sobre a obra da própria Hilda Hilst: “Nenéca, é uma peça burlesca, já te disse, ou você acha que o pessoal quer a HH, aquela metafísica croata?” (HILST: 2002, 75)

A inclusão do discurso teatral à babel discursiva formada pela narrativa de Contos d’Escárnio contribui para acentuar a natureza dialógica do texto. Alcir Pécora, ao chamar a atenção para o uso do fluxo de consciência em Hilda Hilst, registrou a peculiaridade de sua presença no universo da escritora:

             Não se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual
             a narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos
             do narrador. O fluxo em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo
             surpreendentemente teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao
             próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem
             e como linguagem sobre linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos
             do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária
             supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente
             textuais, disseminados alternadamente como falas de diferentes personagens
             que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia
             discursiva da narração. Daí a impressão viva de que aquilo que no narrador de
             Hilda pensa está atuando. E atuando em cena aberta: atuando cara a cara com
             uma plateia tendenciosa, hostil e predominantemente estúpida. Mais do que a
             subjetividade ou a psicologia, o que a sua prosa encena como flagrante de
             interioridade é o drama da posição do narrador face ao que escreve: aquilo que
             se passa com alguém quando se vê determinado a falar, mais, digamos, por
             efeito de possessão ou determinação irresistível de certa forma vicária de ser e
             de viver do que por vontade própria. (PÉCORA: 2005, 4)


Da leitura de um novo texto de Hans Haeckel, Crasso muda para uma narrativa epistolar, pois desloca-se espacialmente à procura da produção inédita de Hans Haeckel, considerada pela própria mãe do infausto escritor como “lixo”. Desse modo, aparecem, então, reunidos os dois extremos da literatura: o baixo, constituído por obras destituídas de qualquer valor artístico, e o alto, representado por trabalhos marcados pela elaboração da linguagem, pelo apuro formal e pela qualidade estética. Cartas d’escárnio, nesse sentido, resulta do diálogo entre as duas faces da escrita hilstiana, alimentando uma tensão que busca romper o impasse que a submissão a qualquer uma delas representa para a autora.

“Conto póstumo de Hans Haeckel”, o próximo quadro no caos de Contos d’escárnio, é mais uma estória curta no meio da narrativa desordenada de Crasso. Além da manutenção do clima agressivo da obra, retratado de modo onírico através do sonho da personagem com o falo de Deus a jorrar sangue e sêmen negro, a pequena composição retorna ao desencanto com a realidade brasileira: “quanto à nação, seus sentimentos eram de revolta, dor, absurdez, porque ser brasileiro é ser ninguém, é ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo.” (HILST: 2002, 84) Desencanto retomado mais à frente, de modo irônico, por Crasso: “E me lembrei, felizmente, que estamos no Brasil. O país bandalho”. (HILST: 2002, 88)

O próximo conto de Hans Haeckel é terrível. Dois meninos resolvem matar uma velha que catava lixo e seu cachorro magricela. Matam-nos, arrancam os olhos dos dois e comem com uma crueldade obscena e infantil.

O próximo quadro é denominado “Conto de Crasso em depressão”, motivado provavelmente por um mecanismo de contaminação provocado pelos textos de Hans. O que nele chama mais a atenção é o ataque hilário e mortal desferido em um dos mais destacados poetas contemporâneos da literatura brasileira, João Cabral de Melo Neto.

             Ele deslizava a lâmina da faca na água da bacia. Lembrou-se de um poeta que
             adora facas. Que cara chato, pô. Inventaram o cara. Nada de emoções, ele vive
             repetindo, sou um intelectual, só rigor, ele vive repetindo. Deve esporrar dentro
             de uma tábua de logaritmo. Ou dentro de um dodecaedro. Ou no quadrado da
             hipotenusa. Na elipse. Na tangente. Deve dormir num colchão de facas. Deve
             ter o pau quadrado. Êta cabra-macho rigoroso! Chato chato. (HILST: 2002, 91)


A narrativa ainda prossegue com poemas, diálogos com Clódia, fluxo de consciência, mais um conto de Hans Haeckel (tematizando morte e infância) e outro de Crasso (um diálogo entre o narrador-personagem e a mãe), outro diálogo entre o narrador e o demônio, curiosamente representado por um senhor de meia-idade, linguista, interessado em semântica, semiótica e epistemologia.
Quase ao final do livro, Crasso-Hans Haeckel-Hilda Hilst pode insistir na acusação- justificativa que atravessa toda a obra:

             Pensar que tenho ainda que pensar uma nova estória para as devassas e
             solitárias noites do editor. De um hipotético editor. Enfim todos os editores a
             meu ver são pulhas. Eh, gente, miserável mesquinha e venal. (Vide o pobre do
             Hans Haeckel.) Morreu porque pensava. Editor só pensa com a cabeça do pau,
             eh gente escrota! Quando o Hans Haeckel pensou em escrever uma estorinha
             meninil muito da ingenuazinha pornô para ganhar algum dinheiro porque ele
             passava fome àquela época, o editor falou: escabroso, Hans, nojentinho. Hans,
             isso com menininhas! Mas que monturo de nomes nomes estrangeiros ele
             publicava às pampas! Que grandes porcarias! Bem. Vamos lá. (HILST: 2002,
             104-105)

Qualquer referência aos textos de Hilda Hilst não deixa escapar a questão da obscenidade na configuração da obra. No caso específico de Contos d’escárnio: textos grotescos, o caráter obsceno confere à narrativa uma força demolidora que desconstrói os paradigmas da literatura pornográfica graças a um processo de aguda ironia, à perspectiva crítica da enunciação e aos requintes de uma linguagem capaz de incorporar os mais diversos registros. Uma leitura fixada apenas no apelo ao escabroso e às solicitações de uma sexualidade mais vulgar, portanto, é uma recepção incompleta do universo hilstiano; nele a palavra obscena funciona como aquilo que está “fora de cena” (MORAES & LAPEIZ: 110), isto é, refere-se àquelas cenas que não são apresentadas no palco da sociabilidade cotidiana. É o espaço do proibido, do não dizível, do censurado.

Se tal característica permite perceber a natureza dramática da escrita hilstiana, por outro lado vale a pena ressaltar que a obscenidade não é o centro, mas parte de um processo agenciado por uma pluralidade de temas: morte, deus, amor, velhice, questões metafísicas, problemas sociais tratados com sutileza e ironia etc.

O leitor desavisado sofre uma espécie de golpe violento ao ser iniciado em HH, torna-se para ele uma processo complexo identificar as diferentes sequências narrativas, relacionando-as a personagens mutáveis em um universo ficcional que contrasta imagens, que aproxima o inesperado e que não se curva às relações causais próprias da referencialidade à qual faz alusão. O espaço da sujeira e do vocabulário chulo convive com a assepsia da erudição.

A pornografia não é imposta pelo consumo, ela resulta da repressão, da violência e da interdição. Por primária, instintiva e natural pulsão sexual, a linguagem do reprimido retorna como fetiche do proibido. Não é o mercado que cria a pornografia. A imaginação tenta traduzir uma linguagem cuja interdição é uma forma de invisibilidade, essa tradução ao revela a forma proibida (re)produz prazer. O prazer pornográfico esgota-se nos limites da sexualidade básica, animal, em sua fisicalidade. O prazer advindo da obscenidade envolve uma dimensão social, um deleitar-se comum que ultrapassa os limites da pura sexualidade, invadindo o estético, o político e o social.

A narrativa de Hilda Hilst, portanto, subverte o pornográfico, retira o rótulo de interdito, de escrita menor, ultrapassa os limites entre o erótico, o obsceno e o pornográfico, criando uma obra numa fronteira que a crítica nunca conseguiu assentar com nitidez, apesar de todo o repertório conceitual. Talvez pelo extraordinário grau de indeterminação da natureza humana, por ser uma região profunda, insondável, apesar de a razão tentar mapeá-la. O atávico, o primordial, o caráter fundador na pulsão sexual, por não encontrar no vazio o eco onde o seu rosto reapareça, lança-se à busca. É esse o caminho cruzado por perversão e santidade, escrita suicida e escrita de desamparo, prece e blasfêmia, insulamento radical e radical desejo de encontro do Outro, Ele, no cerne da obra hilstiana.

A pornografia tem sido, ao longo do tempo, um reduto masculino. Uma linguagem normalmente produzida por homens, destinada à leitura de um público masculino. Nele a mulher é alvo, objeto de manipulação. Ousar invadir domínio tão machista, já provoca estranheza em relação à mulher, embora diversas mulheres tenham cometido tal ousadia. Maior é o espanto quando alguém invade a cena pornográfica para pervertê-la, e a perversão de Hilda Hilst é furtar à interdição a sacralidade de ser um ritual encenado em teatro subterrâneo e dar ao texto qualidade estética. A pornografia em Hilda Hilst é uma linguagem ascética encenada a céu aberto. Não esconde suas chagas e feridas, não domina seu alto grau de insanidade. É capaz de mostrar-se e evitar todo o grau de exibicionismo implícito em qualquer texto pornográfico.

Uma leitura de Contos d’escárnio sob os olhos da ecocrítica exige uma compreensão mais refinada da ecologia, capaz de ultrapassar as simples referências ambientais e apreender o significado mais profundo desse campo de conhecimento “que não é, primordialmente, um problema econômico e político, mas, sim, um problema de relação do homem consigo mesmo, com os outros e com as coisas”. (CASTRO: 1991, 13) Essa densa e extensa rede de relações que encobrem a existência humana é exposta por Hilda Hilst em estado agônico, em crise, numa exibição nua e crua da falência de um tempo e modo de organização da humanidade, espelhado no caos de gêneros com o qual o livro é arquitetado, na rarefação de personagens da narrativa, no colapso de hierarquias e identidades.
A etimologia da palavra ecologia lança luzes sobre à compreensão de seu significado e auxilia a perceber como Hilda Hilst contribuiu para revelar áreas menos visíveis da questão ecológica. Manuel Antônio de Castro relatou o processo de formação da palavra:

             Ecologia se constitui de dois termos gregos. 1º. Oikos, que significa: habitação,
             família, raça: este, em grego, se forma do verbo oikizein, que significa: instalar,
             construir, fundar. 2º. Logia, que se formou do verbo leguein: dizer, anunciar,
             ler, ordenar. A este verbo se prende também a palavra logos (daí logia), que
             significa: palavra, razão, discurso. Percorrendo e confrontando os diferentes
             significados possíveis dos dois termos gregos, notamos que em nenhum
             momento aparece a palavra natureza. Muito pelo contrário, se há um significado
             central no termo ecologia, este é HABITAÇÃO. (Castro: 1991, 14)

Podemos observar a presença em todas as narrativas hilstianas, de uma forma ou de outra, a existência de seres desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.

Nota
1 Designação tomada de empréstimo a Alcir Pécora que a expôs no prefácio de Contos d’escárnio. Textos grotescos (p. 6).

Referências

CASTRO, Manuel Antônio de. “Ecologia: a cultura como habitação”. In:
SOARES, Angélica. Ecologia e literatura. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1992.

GLOTFELTY, Cheryll. Introduction-literary studies in an age of environmental
crisis. In: GLOTFELTY, Cheryll, FROMM, Harold; eds. The ecocriticism
reader – landmarks in literary ecology. Athens / London. The Univ. of
Geórgia Press, 996.

HILST, Hilda. Contos d’escárnio. Textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002.
MORAES, Eliane Robert e LAPEIZ, Sandra Maria. O que é pornografia. São
Paulo: Brasiliense, 1984.

PÉCORA, Alcir. Hilda Hilst: call for papers. Disponível em: http: //

QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.

RUECKERT, Willian. Literature and ecology: an experiment in Ecocriticism. In:
GLOTFELTY, Cherryl. FROMM, Harold; eds. The ecocriticism reader
– landmarks in literary ecology. Athens / London. The Univ. of Geórgia
Press, 1996. p. 105-23.


* Trabalho publicado em Garrafa, n° 16 - Jan/abr 2008 - Revista do Programa de Ciência de Literatura da UFRJ

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