Hilst: exílio da oikos
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Contos d’escárnio. Textos grotescos é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos, de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme. As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem céu., do mal-estar da existência, da privação, cujo maior símbolo é a presença de um deus ausente.
A escolha do nome do narrador revela, ainda, outra marca do estilo hilstiano: a incessante referência a autores, livros e personagens (reais ou fictícios) do mundo da arte. Assim, apenas nas duas páginas iniciais, fora a escolha do próprio narrador, existem referências à mania (da mãe de Crasso) de ler História das Civilizações, à paixão por Vladimir Horowitz, além da citação de ...E o vento levou, Rebeca, Os sertões e Ana Kariênina. Aqui pode ser observado mais um recurso que subtrai ao caráter pornográfico posição hegemônica na construção da prosa hilstiana. As referências ao universo mais alto da literatura, a crítica a determinados autores, a eleição de outros, a discussão de ideias e de trabalhos dos universos artístico, filosófico e científico não são recursos apropriados ao universo de revelação do interdito com intenção de prazer não estético que é o caráter mais pertinente ao campo pornográfico. O pornográfico, em Hilda Hilst, encontra-se a serviço de uma estética do choque, da ruptura e do absurdo.
A narrativa de Crasso surge motivada pela proliferação de textos. O excesso de livros é percebido como acúmulo de lixo. É a produção de resíduos textuais que justifica a obra, fruto, portanto, de um desequilíbrio ecológico, uma intervenção nociva do ser humano na natureza. Texto e pornografia surgem como formas de manifestação do desamparo que acabam fundidas em uma só forma – a arte – com a qual se busca freneticamente prazer, sentido e resposta.
A referência direta ao leitor é utilizada ao longo da obra, como pode ser demonstrado em: “E agora, falando em igreja, lembrei-me que ainda não lhes contei como é que foi a morte do tio Vlad” (HILST: 2002, 23) ou em “Antes de falar da igreja vou falar do bordel a 30 quilômetros da Gota do Touro”. (HILST: 2002, 27) As cenas e os contos vão surgindo através de um processo caótico, já apontado no início pelo próprio narrador, frequentemente com a quebra do ritmo por incursões do narrador que ora antecipa histórias, ora intercala reflexões, ora muda a forma discursiva, ora ausenta-se para logo retornar, ora surge sob nome diferente. Esse caráter proteico permitiria, com mais propriedade, considerá-lo um antinarrador (1).
Apesar de esgotar todas as possibilidades de expressão, não consegue descobrir um termo que traduza plenamente aquilo que pretende dizer. Resta apelar ao discernimento do leitor.
As reflexões linguísticas multiplicam-se por toda a narrativa de Contos d’escárnio. Clódia é denominada “leoa dos plátanos” por conta da sonoridade da palavra, numa demonstração da força que os jogos com os significantes ganham nos textos hilstianos. A mesma personagem também é caracterizada pelo fato de falar diminutivos em alemão, marca linguística por trás da qual Hilda Hilst esconde um de próprios atributos.
A seriedade do escritor em um ambiente hostil é uma espécie de suicídio, por isso Hans Haeckel mata-se logo após ouvir a proposta de Crasso. Sob a forma dialógica surge o impasse hilstiano, o insulamento de uma obra alimentada por paixão, verdade e conhecimento e o desejo de reconhecimento.
Isso significa que Hilda Hilst condena o exercício do poder por um tipo de bandidagem que se volta contra a prática de liberdade e lucidez representada, em seu estado mais profundo, pela literatura. Em uma realidade onde predominam a vulgaridade, a alienação completa, a velhacaria política e social, resta tão somente a criação de um narrador entregue ao desengano, ao delírio, à loucura ou à morte. O texto hilstiano, de acordo com a ótica de Alcir Pécora, formula, dessa maneira, uma síntese amplificada de todas as obscenidades dissimuladas, institucionalizadas, normalizadas e naturalizadas na paisagem brasileira e humana.
Da leitura de um novo texto de Hans Haeckel, Crasso muda para uma narrativa epistolar, pois desloca-se espacialmente à procura da produção inédita de Hans Haeckel, considerada pela própria mãe do infausto escritor como “lixo”. Desse modo, aparecem, então, reunidos os dois extremos da literatura: o baixo, constituído por obras destituídas de qualquer valor artístico, e o alto, representado por trabalhos marcados pela elaboração da linguagem, pelo apuro formal e pela qualidade estética. Cartas d’escárnio, nesse sentido, resulta do diálogo entre as duas faces da escrita hilstiana, alimentando uma tensão que busca romper o impasse que a submissão a qualquer uma delas representa para a autora.
“Conto póstumo de Hans Haeckel”, o próximo quadro no caos de Contos d’escárnio, é mais uma estória curta no meio da narrativa desordenada de Crasso. Além da manutenção do clima agressivo da obra, retratado de modo onírico através do sonho da personagem com o falo de Deus a jorrar sangue e sêmen negro, a pequena composição retorna ao desencanto com a realidade brasileira: “quanto à nação, seus sentimentos eram de revolta, dor, absurdez, porque ser brasileiro é ser ninguém, é ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo.” (HILST: 2002, 84) Desencanto retomado mais à frente, de modo irônico, por Crasso: “E me lembrei, felizmente, que estamos no Brasil. O país bandalho”. (HILST: 2002, 88)
A narrativa ainda prossegue com poemas, diálogos com Clódia, fluxo de consciência, mais um conto de Hans Haeckel (tematizando morte e infância) e outro de Crasso (um diálogo entre o narrador-personagem e a mãe), outro diálogo entre o narrador e o demônio, curiosamente representado por um senhor de meia-idade, linguista, interessado em semântica, semiótica e epistemologia.
Qualquer referência aos textos de Hilda Hilst não deixa escapar a questão da obscenidade na configuração da obra. No caso específico de Contos d’escárnio: textos grotescos, o caráter obsceno confere à narrativa uma força demolidora que desconstrói os paradigmas da literatura pornográfica graças a um processo de aguda ironia, à perspectiva crítica da enunciação e aos requintes de uma linguagem capaz de incorporar os mais diversos registros. Uma leitura fixada apenas no apelo ao escabroso e às solicitações de uma sexualidade mais vulgar, portanto, é uma recepção incompleta do universo hilstiano; nele a palavra obscena funciona como aquilo que está “fora de cena” (MORAES & LAPEIZ: 110), isto é, refere-se àquelas cenas que não são apresentadas no palco da sociabilidade cotidiana. É o espaço do proibido, do não dizível, do censurado.
Contos d’escárnio. Textos grotescos é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos, de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme. As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem céu., do mal-estar da existência, da privação, cujo maior símbolo é a presença de um deus ausente.
Crasso,
o narrador-personagem, na autoapresentação e justificativa realizadas nas
primeiras páginas da narrativa, revela ter ficado órfão nos seus primeiros
meses de vida: a mãe falecera logo após ele receber o nome de batismo e o pai
morreu um mês depois em um bordel. O desamparo surge, dessa forma, como
componente fundamental da sua existência. Corresponde a um não-habitar, a uma oikos deslocada, à intrusão em outra
casa, no centro de relações que não são aquelas que formariam o seu espaço, a
sua identidade, pois sua inserção na órbita do tio Vlad equivale ao desterro do
mundo paterno, a uma condenação à vida no exílio.
A
cena inicial contém ainda uma das características mais recorrentes na obra da
autora: a preocupação com a escolha e a etimologia dos nomes próprios,
extraídos geralmente de fontes culturais clássicas. Em outros momentos a autora
opta por nomes raros, de ressonâncias herméticas. De qualquer maneira, os nomes
são colhidos fora da contemporaneidade, ensaiam uma linha de continuidade com o
passado, seja histórico, seja mítico. Esse processo de nomeação de personagens
institui uma atmosfera que ajuda a inserir o universo obsceno contemporâneo
numa linhagem dotada de uma espécie de nobreza cultural. Um dos recursos pelos
quais a autora escapa ao aprisionamento nos marcos estreitos da pornografia é
justamente essa sofisticada preocupação linguística que se sobrepõe às
sucessivas eclosões de vulgaridade e linguagem chula. O fascínio e a fixação
por supostas propriedades inerentes aos nomes pode ser constatado na referência
a uma das numerosas amantes de Crasso:
Ah, tudo que eu fiz com e por
Otávia. Ela tinha trinta anos e todas as sugestões
que o nome carrega: altivez, um
pouco de fúria, cabelos negros, olhos grandes,
escuros, e dizer Otávia na hora do
gozo é como gozar com mulher e ao mesmo
tempo com general romano, com
rapagão e com Otávia inteira mulher de
general. (HILST: 2002, 15)
A escolha do nome do narrador revela, ainda, outra marca do estilo hilstiano: a incessante referência a autores, livros e personagens (reais ou fictícios) do mundo da arte. Assim, apenas nas duas páginas iniciais, fora a escolha do próprio narrador, existem referências à mania (da mãe de Crasso) de ler História das Civilizações, à paixão por Vladimir Horowitz, além da citação de ...E o vento levou, Rebeca, Os sertões e Ana Kariênina. Aqui pode ser observado mais um recurso que subtrai ao caráter pornográfico posição hegemônica na construção da prosa hilstiana. As referências ao universo mais alto da literatura, a crítica a determinados autores, a eleição de outros, a discussão de ideias e de trabalhos dos universos artístico, filosófico e científico não são recursos apropriados ao universo de revelação do interdito com intenção de prazer não estético que é o caráter mais pertinente ao campo pornográfico. O pornográfico, em Hilda Hilst, encontra-se a serviço de uma estética do choque, da ruptura e do absurdo.
Crasso,
alter ego de Hilda Hilst, expõe as razões que o levam a produzir o texto:
Resolvi escrever este livro porque
ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo
que resolvi escrever o meu. Sempre
sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito
pela literatura que jamais ousei.
Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E
os outros, os que lêem, também
acham que os idiotas o são. É tanta bestagem
em letra de forma que pensei, por
que não posso escrever a minha? A verdade é
que não gosto de colocar fatos
numa seqüência ortodoxa, arrumada. Os jornais
estão cheios de histórias com
começo, meio e fim. Então não vou escrever um
romance como ...E o Vento Levou ou Rebeca,
Os Sertões e Ana Karenina então
nem se fala. Os verbos chineses
não possuem tempo. Eu também não. (HILST:
2002, 14)
A narrativa de Crasso surge motivada pela proliferação de textos. O excesso de livros é percebido como acúmulo de lixo. É a produção de resíduos textuais que justifica a obra, fruto, portanto, de um desequilíbrio ecológico, uma intervenção nociva do ser humano na natureza. Texto e pornografia surgem como formas de manifestação do desamparo que acabam fundidas em uma só forma – a arte – com a qual se busca freneticamente prazer, sentido e resposta.
A
segunda sequência traz as personagens Otávia e Lina, esta, poetisa de voo
limitado. O estilo de Hilda adquire em muitas passagens o caráter descritivo
apropriado aos textos pornográficos, nos quais as minúcias realistas suprem o
leitor da excitação necessária ao prazer e alívio que tais narrativas prometem.
Paradoxalmente, Hilst não cumpre o acordo tácito com o leitor, pois o texto
adquire conformações diversas do hiper-realismo sexual esperado e mergulha,
incessantemente, em reflexões, digressões e cortes narrativos que impedem a sua
redução a qualquer grau de previsibilidade. Mesmo quando descreve cenas em que
o sexo é tratado de modo central, o narrador opera com desvios que
despotencializam a crueza da expressão. É o que acontece na cena descrita
abaixo:
Otávia por exemplo gostava de
apanhar. A primeira vez que a “fodi” (ou que
“fodia-a” ou que “fui fodê-la”, é
melhor?) enganei-me na tradução de seu breve
texto. Ela me disse: me dá uma
surra. Entendi que era uma surra de pau. E fui
metendo, me aguentando longamente
para não esporrar, pensando na mãe
morta, no pai morto, na missa de sétimo
dia do tio Vlad, que depois eu conto
como ele morreu, e nesse todo
patético deprimente que é morte e doença. Aí ela
me interrompe a meditação ativa,
dura e disciplinada.
surra, amor, eu disse. Surra, meu
bem.
Então entendi. Meti-lhe a mão na
cara quatro, cinco vezes. (HILST: 2002, 16
17)
O foco sobre o caráter obsceno do trecho é desviado mediante a irrupção de uma
preocupação de natureza linguística nas duas primeiras linhas. O desvio é
acentuado pelo efeito humorístico provocado pela ambiguidade da palavra
“surra”, na dupla função de submissão de alguém à intensa atividade sexual ou
de sucessão de pancadas violentas em determinado indivíduo. Intensifica-se,
finalmente, com o privilégio concedido à exibição em primeiro plano dos
pensamentos do protagonista em detrimento da ação física, cujo detalhamento
corresponderia à expectativa apropriada ao texto obsceno. Vale ressaltar que “a
meditação ativa, dura e disciplinada” é constituída por uma reflexão sobre
aspectos negativos, formando um plano antitético em relação à entrega a todo o
tipo de prazer sexual: as ideias de Crasso concentram-se em torno de morte,
dor, doença e sofrimento.
A
atividade sexual também surge relacionada a um processo de animalização, à
componente de bestialidade tão presente ao longo da obra da autora. A
animalização não apenas representa a dimensão primária, vital e instintiva da
sexualidade. Ela simboliza o esvaziamento do ser, destituído de sua própria
humanidade, reduzido a uma forma viva que se confunde com qualquer outra.
Assim, o auge do perversão prazerosa proporcionada por Otávia é explicitado
numa comparação bastante reveladora: “Como se você estivesse fodendo uma
onça-mulher filhote”. (HILST: 2002, 17)
O
próximo bloco narrativo, dedicado a mais duas amantes, formula uma crítica a um
comportamento típico do machismo: a desvalorização da inteligência como um
atributo feminino, razão pela qual Crasso pode afirmar: “Quando eram cultas,
simplesmente me enojavam” (HILST: 2002, 18). Uma das amantes, Flora, era chata,
culta (citava Lucrécio na cama) e extorquia dinheiro de Crasso. A outra,
Josete, tinha gosto exótico na comida e no sexo, além de possuir mania de
música. Todavia, sua importância para a narrativa consiste na obsessão por Ezra
Pound. É essa paixão que fornece a Crasso, alter
ego de Hilda Hilst, a oportunidade de criticar um dos ícones da poesia do
século passado. Após manifestar repulsa à proposta estética do poeta, denominando-o
repelente, fascistoide, engodo e invenção de letrados pedantescos, incorpora à
obra trecho extraído da obra poundiana, intitulado “Do Caos à Ordem”, canto XV,
composição construída em linguagem coprológica. A transcrição do texto,
considerado lixo por Crasso-HH, não é suficiente. É necessário o recurso à
crueldade: os versos de Pound estão tatuados em redor do ânus de Josete. A
poesia do autor de Cantos mais do que
negada, é ultrajada, relegada a lixo, escrita imunda, sem valor.
A referência direta ao leitor é utilizada ao longo da obra, como pode ser demonstrado em: “E agora, falando em igreja, lembrei-me que ainda não lhes contei como é que foi a morte do tio Vlad” (HILST: 2002, 23) ou em “Antes de falar da igreja vou falar do bordel a 30 quilômetros da Gota do Touro”. (HILST: 2002, 27) As cenas e os contos vão surgindo através de um processo caótico, já apontado no início pelo próprio narrador, frequentemente com a quebra do ritmo por incursões do narrador que ora antecipa histórias, ora intercala reflexões, ora muda a forma discursiva, ora ausenta-se para logo retornar, ora surge sob nome diferente. Esse caráter proteico permitiria, com mais propriedade, considerá-lo um antinarrador (1).
Em
meio às putarias, o narrador encontra tempo para ir à igreja, lugar que o
conduz a discorrer sobre religião e a demonstrar familiaridade com a história
do cristianismo, através de referências à perseguição que os católicos moveram
aos cátaros no século XII. A presença na igreja não denota expressão de fé,
pois dá vazão a uma crítica virulenta ao apego da instituição aos bens
materiais. Na igreja encontra Clódia, uma nova amante.
O
narrador faz referência aos autores lidos na mocidade, Spinoza, Kierkegaard,
Keats, Yeats, Dante, ao mesmo tempo em que reconhece estar em um processo de
decadência.
A
obsessiva preocupação com o vocabulário parece na verdade um trabalho artesanal
de demolição do tom pornográfico da narrativa, construída, num amálgama de
intenção irônica e realização metalinguística. Surge, de modo inesperado, por
meio de palavras consideradas inadequadas ao contexto lascivo em que são
inseridas, como no momento em que sofre atração por Clódia:
Meu pau fremiu (essa frase aí é
uma sequela minha por ter lido antanho o D. H.
Lawrence). Digo talvez meu pau
estremeceu? Meu pau agitou-se? Meu pau
levantou a cabeça? Esse negócio de
escrever é penoso. É preciso definir com
clareza, movimento e emoção. E o estremecer
do pau é indefinível. Dizer um
arrepio do pau não é bom. Fremir é
pedantesco. Eu devo ter lido uma má
tradução do Lawrence, Porque está
aqui no dicionário: fremir (do latim fremere)
ter rumor surdo e áspero. Dão um
exemplo: “Os velozes vagões fremiam”.
Nada a ver com o pau. Depois,
sinônimos: bramir, rugir, gemer, bramar. Crê,
como dizia o padre tutor do Tavim,
nada mesmo a ver com o pau. Meu pau
vibrou, meu pau teve contrações
espasmódicas? Nem pensar. Então, meu pau
aquilo. O leitor entendeu. (HILST:
2002, 32)
Apesar de esgotar todas as possibilidades de expressão, não consegue descobrir um termo que traduza plenamente aquilo que pretende dizer. Resta apelar ao discernimento do leitor.
O
jogo vocabular deixa transparecer o rico universo cultural de Crasso. Clódia, a
museóloga e pintora de vaginas, e Crasso são nomes retirados do mundo romano.
Clódia foi o grande amor de Catulo, um dos grandes poetas de Roma lido por
Crasso aos dezoito anos.
A
referência ao universo cultural que o nome Clódia evoca é pretexto para o
surgimento de uma peça de oratória de caráter erótico e solene, como se fosse escrita
para ser proferida por um nobre tribuno romano.
Ó conas e caralhos, cuidai-vos!
Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando
sempre abaixo de vossas cinturas!
Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas,
lolitas-velhas! Colocai vossas
mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha
vagarosa, dourada, a úmida língua
nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de
marfim, plantados nas gengivas
luzentes! Cáustica, Clódia atravessa ruas,
avenidas e brilhosas calçadas. Ó,
pelos deuses, adentrai vossas urnas de basalto
porque a leoa ronda vossas salas e
quartos! Quer lamber-vos a cona, quer
adestrar caralhos, quer o
néctar augusto de vagina e falos! Centuriões, moçoilos,
guerreiros, senadores, atentai!
Uma leoa persegue tudo o que é vivo mole incha
e cresce! Trançai vossas pernas,
trançai vossas mãos atentas sobre as partes
pudendas! Não temais a vergonha de
andar pelas ruas em torcidas posturas, pois
Clódia está nas ruas! (HILST:
2002, 36-37)
As reflexões linguísticas multiplicam-se por toda a narrativa de Contos d’escárnio. Clódia é denominada “leoa dos plátanos” por conta da sonoridade da palavra, numa demonstração da força que os jogos com os significantes ganham nos textos hilstianos. A mesma personagem também é caracterizada pelo fato de falar diminutivos em alemão, marca linguística por trás da qual Hilda Hilst esconde um de próprios atributos.
A
narrativa, a partir de certo momento, adquire a conformação de um espelho no
qual Crasso, o narrador, transforma-se em Hans Haeckel. Se o primeiro dá origem
ao texto escabroso, lascivo, obsceno, o segundo correponde à figura do escritor
sério, ignorado pela crítica, invejado por outros escritores, comprometido até
a raiz com a literatura. Em ambos, no entanto, é visível a projeção da imagem
de Hilda Hilst, como pode ser comprovado no diálogo entre as duas personagens:
Hans, vamos escrever a quatro mãos
uma história pornéia, vamos inventar uma
pornocracia, Brasil meu caro,
vamos pombear os passos de Clódia e exaltar a
terra dos pornógrafos, dos pulhas,
dos velhacos, dos vis.
não posso. Literatura para mim é
paixão. Verdade. Conhecimento. (HILST:
2002, 41)
A seriedade do escritor em um ambiente hostil é uma espécie de suicídio, por isso Hans Haeckel mata-se logo após ouvir a proposta de Crasso. Sob a forma dialógica surge o impasse hilstiano, o insulamento de uma obra alimentada por paixão, verdade e conhecimento e o desejo de reconhecimento.
A
formulação de uma história porneia pode ser entendida como uma reação crítica e
irônica à vulgarização de uma literatura de baixo nível, baseada em recursos
técnicos primários e limitados, sem qualquer preocupação com qualidade, verdade
e conhecimento, cuja maior representante é o best-seller. Paradoxalmente, HH busca de modo deliberado na mais
desprezada das literaturas de consumo, a pornográfica, esvaziada de
intencionalidade estética, o alvo para a denúncia e a fonte de uma estética
transgressora.
A
concepção estética traz subjacente uma crítica política, fato observado por um
dos maiores estudiosos de sua obra, Alcir Pécora:
Há uma analogia evidente entre, de
um lado, a negatividade produtiva em Hilda
Hilst face à indústria cultural e,
de outro, a adoção de um registro obsceno face
às circunstâncias do Brasil, que
ela trata como país bandalho por antonomásia.
O Brasil, segundo Hilda Hilst, é
uma terra devastada onde o poder injusto e
ilegítimo pactua com a a
venalidade mais mesquinha no meio da celebração da
malandragem e do triunfalismo
nacional-popular-carnavalizante. (PÉCORA:
2005, 11)
Isso significa que Hilda Hilst condena o exercício do poder por um tipo de bandidagem que se volta contra a prática de liberdade e lucidez representada, em seu estado mais profundo, pela literatura. Em uma realidade onde predominam a vulgaridade, a alienação completa, a velhacaria política e social, resta tão somente a criação de um narrador entregue ao desengano, ao delírio, à loucura ou à morte. O texto hilstiano, de acordo com a ótica de Alcir Pécora, formula, dessa maneira, uma síntese amplificada de todas as obscenidades dissimuladas, institucionalizadas, normalizadas e naturalizadas na paisagem brasileira e humana.
Aponta
ainda o ensaísta para um aspecto moralístico inerente à crítica hilstiana:
Para Hilda Hilst, em terra de
pornógrafos, o que cabe ao escritor sério é
produzir a evidência de uma
pornocracia, isto é, da violência hegemônica da
identidade bandalha. Pode-se
pensar, pois, nesses textos obscenos como
exercícios de prosa satírica nos
quais a construção de tipos mistos e
heterogêneos, que definem o
vicioso, o execrável e o repugnante, está
fortemente vinculada a uma moralística,
desde que se dê ao termo o seu sentido
rochefoucauldiano de exercício
bem-humorado de destruição sistemática das
afetações ou autoindulgências
desonestas compartilhadas civilmente.
(PÉCORA: 2005, 12)
Após
o diálogo entre Crasso e Hans Haeckel, surge um pequeno conto (o narrador
aconselha o leitor a evitar a leitura, caso queira continuar vivo), denominado
Lisa, que trata de um caso de zoofilia entre uma macaca (Lisa) e o seu anônimo
dono, ambientado em uma pensão miserável, apesar do nome — Pensão Palácio.
O
texto, depois da breve incorporação do conto de outro narrador, volta à
profusão de cenas grotescas. Dessa vez Clódia vai presa por atentado ao pudor
devido à ideia inusitada de espalhar pinturas de falos em plena rua, obsessão
que acaba levando-a ao hospício. Lá recebe textos de natureza diversa: receita,
conto e teatro.
O
texto de receitas, intitulado “Pequenas sugestões e receitas de
Espanto-Antitédio para senhores e donas de casa” , apresenta construções de
puro nonsense, algumas concebidas com
crueldade, fórmulas de simpatias, receitas reveladoras de leituras científicas
da autora, todas eivadas de uma ironia ferina. A última receita traz crítica
explícita à literatura valorizada pelo mercado, verdadeiro leit motif em sua obra: “Recolha num vidro de boca larga um pouco
do ar de Cubatão e um traque do seu nenê. Compre uma ‘Bicicleta Azul’ e
adentre-se algum tempo nas ‘Brumas de Avalon’. É uma boa receita se você quiser
ser um escritor vendável”. (HILST: 2002, 54)
Três
pequenas peças teatrais são inseridas no corpo da narrativa. A primeira tem por
título “Teatrinho nota 0, no. 1” e sua autoria é atribuída a Zumzum Xeque Pir.
As personagens são paródias que acentuam o caráter de perversão das referências
culturais da literatura ocidental, chegando uma delas a ser nomeada por um
expediente de manifesto mau gosto – Bãocu (corruptela de Banquo, general de
Macbeth; este, por sinal, reduzido a Madbed). A cena final ironiza os
estereótipos de um país em que se escorraçam os letrados e o monstro das
letras: o palco fica em festa com mulatas, seleção de futebol, samba e música
frenética.
O
segundo teatrinho, um diálogo entre pai e filho, denomina-se “Teatrinho nota 0,
no. 2”, de autoria de Nenê Casca Grossa. Trata-se de uma violenta metáfora da
dominação masculina. A animalização da mulher, metaforizada como ursa, deixa à
mostra a condição inferior que lhe é imposta pela estrutura patriarcal da
sociedade brasileira.
A
terceira peça, constituída por um diálogo entre dois jovens — Sonsin e Nenéca —
é intitulada “Teatrinho nota 0, no. 3”, atribuída a Sonson Pentelin. No texto,
entretanto, aparece o título “O Pétala”. A cena é dominada por uma discussão
sobre o tipo de linguagem e situação a ser encenada e como encená-la. Fato que
dá margem a uma observação sobre a obra da própria Hilda Hilst: “Nenéca, é uma
peça burlesca, já te disse, ou você acha que o pessoal quer a HH, aquela
metafísica croata?” (HILST: 2002, 75)
A
inclusão do discurso teatral à babel discursiva formada pela narrativa de Contos d’Escárnio contribui para
acentuar a natureza dialógica do texto. Alcir Pécora, ao chamar a atenção para
o uso do fluxo de consciência em Hilda Hilst, registrou a peculiaridade de sua
presença no universo da escritora:
Não se trata, contudo, da forma
mais conhecida de fluxo de consciência, na qual
a narração ou o enunciado se
apresenta como flagrante realista de pensamentos
do narrador. O fluxo em Hilda é
surpreendentemente dialógico, ou mesmo
surpreendentemente teatral, sem
deixar de se referir sistematicamente ao
próprio texto que está sendo
produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem
e como linguagem sobre linguagem.
O que o fluxo dispõe como pensamentos
do narrador não são discursos
encaminhados como uma consciência solitária
supostamente em ato ou em
formação, mas como fragmentos descaradamente
textuais, disseminados
alternadamente como falas de diferentes personagens
que irrompem, proliferam e
disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia
discursiva da narração. Daí a
impressão viva de que aquilo que no narrador de
Hilda pensa está atuando. E
atuando em cena aberta: atuando cara a cara com
uma plateia tendenciosa, hostil e
predominantemente estúpida. Mais do que a
subjetividade ou a psicologia, o
que a sua prosa encena como flagrante de
interioridade é o drama da posição
do narrador face ao que escreve: aquilo que
se passa com alguém quando se vê
determinado a falar, mais, digamos, por
efeito de possessão ou
determinação irresistível de certa forma vicária de ser e
de viver do que por vontade
própria. (PÉCORA: 2005, 4)
Da leitura de um novo texto de Hans Haeckel, Crasso muda para uma narrativa epistolar, pois desloca-se espacialmente à procura da produção inédita de Hans Haeckel, considerada pela própria mãe do infausto escritor como “lixo”. Desse modo, aparecem, então, reunidos os dois extremos da literatura: o baixo, constituído por obras destituídas de qualquer valor artístico, e o alto, representado por trabalhos marcados pela elaboração da linguagem, pelo apuro formal e pela qualidade estética. Cartas d’escárnio, nesse sentido, resulta do diálogo entre as duas faces da escrita hilstiana, alimentando uma tensão que busca romper o impasse que a submissão a qualquer uma delas representa para a autora.
“Conto póstumo de Hans Haeckel”, o próximo quadro no caos de Contos d’escárnio, é mais uma estória curta no meio da narrativa desordenada de Crasso. Além da manutenção do clima agressivo da obra, retratado de modo onírico através do sonho da personagem com o falo de Deus a jorrar sangue e sêmen negro, a pequena composição retorna ao desencanto com a realidade brasileira: “quanto à nação, seus sentimentos eram de revolta, dor, absurdez, porque ser brasileiro é ser ninguém, é ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo.” (HILST: 2002, 84) Desencanto retomado mais à frente, de modo irônico, por Crasso: “E me lembrei, felizmente, que estamos no Brasil. O país bandalho”. (HILST: 2002, 88)
O
próximo conto de Hans Haeckel é terrível. Dois meninos resolvem matar uma velha
que catava lixo e seu cachorro magricela. Matam-nos, arrancam os olhos dos dois
e comem com uma crueldade obscena e infantil.
O
próximo quadro é denominado “Conto de Crasso em depressão”, motivado
provavelmente por um mecanismo de contaminação provocado pelos textos de Hans.
O que nele chama mais a atenção é o ataque hilário e mortal desferido em um dos
mais destacados poetas contemporâneos da literatura brasileira, João Cabral de
Melo Neto.
Ele deslizava a lâmina da faca na
água da bacia. Lembrou-se de um poeta que
adora facas. Que cara chato, pô.
Inventaram o cara. Nada de emoções, ele vive
repetindo, sou um intelectual, só
rigor, ele vive repetindo. Deve esporrar dentro
de uma tábua de logaritmo. Ou
dentro de um dodecaedro. Ou no quadrado da
hipotenusa. Na elipse.
Na tangente. Deve dormir num colchão de facas. Deve
ter o pau quadrado. Êta
cabra-macho rigoroso! Chato chato. (HILST: 2002, 91)
A narrativa ainda prossegue com poemas, diálogos com Clódia, fluxo de consciência, mais um conto de Hans Haeckel (tematizando morte e infância) e outro de Crasso (um diálogo entre o narrador-personagem e a mãe), outro diálogo entre o narrador e o demônio, curiosamente representado por um senhor de meia-idade, linguista, interessado em semântica, semiótica e epistemologia.
Quase
ao final do livro, Crasso-Hans Haeckel-Hilda Hilst pode insistir na acusação-
justificativa que atravessa toda a obra:
Pensar que tenho ainda que pensar
uma nova estória para as devassas e
solitárias noites do editor. De um
hipotético editor. Enfim todos os editores a
meu ver são pulhas. Eh, gente,
miserável mesquinha e venal. (Vide o pobre do
Hans Haeckel.) Morreu porque
pensava. Editor só pensa com a cabeça do pau,
eh gente escrota! Quando o Hans
Haeckel pensou em escrever uma estorinha
meninil muito da ingenuazinha
pornô para ganhar algum dinheiro porque ele
passava fome àquela época, o editor
falou: escabroso, Hans, nojentinho. Hans,
isso com menininhas! Mas que
monturo de nomes nomes estrangeiros ele
publicava às pampas! Que grandes
porcarias! Bem. Vamos lá. (HILST: 2002,
104-105)
Qualquer referência aos textos de Hilda Hilst não deixa escapar a questão da obscenidade na configuração da obra. No caso específico de Contos d’escárnio: textos grotescos, o caráter obsceno confere à narrativa uma força demolidora que desconstrói os paradigmas da literatura pornográfica graças a um processo de aguda ironia, à perspectiva crítica da enunciação e aos requintes de uma linguagem capaz de incorporar os mais diversos registros. Uma leitura fixada apenas no apelo ao escabroso e às solicitações de uma sexualidade mais vulgar, portanto, é uma recepção incompleta do universo hilstiano; nele a palavra obscena funciona como aquilo que está “fora de cena” (MORAES & LAPEIZ: 110), isto é, refere-se àquelas cenas que não são apresentadas no palco da sociabilidade cotidiana. É o espaço do proibido, do não dizível, do censurado.
Se
tal característica permite perceber a natureza dramática da escrita hilstiana,
por outro lado vale a pena ressaltar que a obscenidade não é o centro, mas
parte de um processo agenciado por uma pluralidade de temas: morte, deus, amor,
velhice, questões metafísicas, problemas sociais tratados com sutileza e ironia
etc.
O
leitor desavisado sofre uma espécie de golpe violento ao ser iniciado em HH,
torna-se para ele uma processo complexo identificar as diferentes sequências
narrativas, relacionando-as a personagens mutáveis em um universo ficcional que
contrasta imagens, que aproxima o inesperado e que não se curva às relações
causais próprias da referencialidade à qual faz alusão. O espaço da sujeira e
do vocabulário chulo convive com a assepsia da erudição.
A
pornografia não é imposta pelo consumo, ela resulta da repressão, da violência
e da interdição. Por primária, instintiva e natural pulsão sexual, a linguagem
do reprimido retorna como fetiche do proibido. Não é o mercado que cria a
pornografia. A imaginação tenta traduzir uma linguagem cuja interdição é uma
forma de invisibilidade, essa tradução ao revela a forma proibida (re)produz
prazer. O prazer pornográfico esgota-se nos limites da sexualidade básica,
animal, em sua fisicalidade. O prazer advindo da obscenidade envolve uma
dimensão social, um deleitar-se comum que ultrapassa os limites da pura
sexualidade, invadindo o estético, o político e o social.
A
narrativa de Hilda Hilst, portanto, subverte o pornográfico, retira o rótulo de
interdito, de escrita menor, ultrapassa os limites entre o erótico, o obsceno e
o pornográfico, criando uma obra numa fronteira que a crítica nunca conseguiu
assentar com nitidez, apesar de todo o repertório conceitual. Talvez pelo
extraordinário grau de indeterminação da natureza humana, por ser uma região
profunda, insondável, apesar de a razão tentar mapeá-la. O atávico, o
primordial, o caráter fundador na pulsão sexual, por não encontrar no vazio o
eco onde o seu rosto reapareça, lança-se à busca. É esse o caminho cruzado por
perversão e santidade, escrita suicida e escrita de desamparo, prece e
blasfêmia, insulamento radical e radical desejo de encontro do Outro, Ele, no
cerne da obra hilstiana.
A
pornografia tem sido, ao longo do tempo, um reduto masculino. Uma linguagem
normalmente produzida por homens, destinada à leitura de um público masculino.
Nele a mulher é alvo, objeto de manipulação. Ousar invadir domínio tão
machista, já provoca estranheza em relação à mulher, embora diversas mulheres
tenham cometido tal ousadia. Maior é o espanto quando alguém invade a cena
pornográfica para pervertê-la, e a perversão de Hilda Hilst é furtar à
interdição a sacralidade de ser um ritual encenado em teatro subterrâneo e dar
ao texto qualidade estética. A pornografia em Hilda Hilst é uma linguagem
ascética encenada a céu aberto. Não esconde suas chagas e feridas, não domina
seu alto grau de insanidade. É capaz de mostrar-se e evitar todo o grau de
exibicionismo implícito em qualquer texto pornográfico.
Uma
leitura de Contos d’escárnio sob os
olhos da ecocrítica exige uma compreensão mais refinada da ecologia, capaz de
ultrapassar as simples referências ambientais e apreender o significado mais
profundo desse campo de conhecimento “que não é, primordialmente, um problema
econômico e político, mas, sim, um problema de relação do homem consigo mesmo,
com os outros e com as coisas”. (CASTRO: 1991, 13) Essa densa e extensa rede de
relações que encobrem a existência humana é exposta por Hilda Hilst em estado
agônico, em crise, numa exibição nua e crua da falência de um tempo e modo de
organização da humanidade, espelhado no caos de gêneros com o qual o livro é
arquitetado, na rarefação de personagens da narrativa, no colapso de
hierarquias e identidades.
A
etimologia da palavra ecologia lança luzes sobre à compreensão de seu
significado e auxilia a perceber como Hilda Hilst contribuiu para revelar áreas
menos visíveis da questão ecológica. Manuel Antônio de Castro relatou o
processo de formação da palavra:
Ecologia se constitui de dois
termos gregos. 1º. Oikos, que significa: habitação,
família, raça: este, em grego, se
forma do verbo oikizein, que significa: instalar,
construir, fundar. 2º. Logia, que
se formou do verbo leguein: dizer, anunciar,
ler, ordenar. A este verbo se
prende também a palavra logos (daí logia), que
significa: palavra, razão, discurso.
Percorrendo e confrontando os diferentes
significados possíveis dos dois
termos gregos, notamos que em nenhum
momento aparece a palavra
natureza. Muito pelo contrário, se há um significado
central no termo ecologia, este é
HABITAÇÃO. (Castro: 1991, 14)
Podemos observar a presença em todas as
narrativas hilstianas, de uma forma ou de outra, a existência de seres
desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas
ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de
exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A
obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive
remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã
inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.
Nota
1
Designação tomada de empréstimo a Alcir Pécora que a expôs no prefácio de Contos d’escárnio. Textos grotescos (p.
6).
Referências
CASTRO,
Manuel Antônio de. “Ecologia: a cultura como habitação”. In:
SOARES,
Angélica. Ecologia e literatura.
Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro,
1992.
GLOTFELTY,
Cheryll. Introduction-literary studies in an age of environmental
crisis.
In: GLOTFELTY, Cheryll, FROMM, Harold; eds. The ecocriticism
reader – landmarks in
literary ecology. Athens / London. The Univ. of
Geórgia
Press, 996.
HILST,
Hilda. Contos d’escárnio. Textos
grotescos. São Paulo: Globo, 2002.
MORAES,
Eliane Robert e LAPEIZ, Sandra Maria. O
que é pornografia. São
Paulo:
Brasiliense, 1984.
PÉCORA,
Alcir. Hilda Hilst: call for papers. Disponível em: http: //
QUEIROZ,
Vera. Hilda Hilst: três
leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
RUECKERT,
Willian. Literature and ecology: an experiment in Ecocriticism. In:
GLOTFELTY,
Cherryl. FROMM, Harold; eds. The
ecocriticism reader
– landmarks in
literary ecology.
Athens / London. The Univ. of Geórgia
Press,
1996. p. 105-23.
*
Trabalho publicado em Garrafa, n° 16 - Jan/abr 2008 - Revista do Programa de
Ciência de Literatura da UFRJ

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