A inversão do olhar em Isaías Caminha
1. Introdução
A crítica tem sido unânime em considerar Recordações do escrivão Isaías Caminha um
romance destituído de equilíbrio, opinião corroborada pelo próprio Lima Barreto
em carta a Gonzaga Duque:
um livro desigual, propositalmente mal feito,
brutal, por vezes, mas
sincero sempre. Espero muito nele para escandalizar e
desagradar (...)
hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os
simples
fatos não dizem, segundo o nosso Taine (apud Barbosa, 1981, p.
162).
No
entanto, a compreensão desse desequilíbrio deliberado ocorre de modo diverso no
autor e na crítica. Aquele, segundo os seus próprios termos, vê a literatura
como a possibilidade de desalienação na formação da consciência, tomando-a
claramente não apenas como complemento ao real, ornamento, constatação de sua
lacunosa percepção, mas espaço de discussão dos principais problemas do tempo e
de construção da linguagem capaz de expressá-los. Já a preocupação desta é de
outra ordem, exclusivamente atenta à organicidade da obra literária, posição
expressa com clareza na objeção fundamental levantada por José Veríssimo:
Há nele, porém, um defeito grave, julgo-o ao
menos, para o qual
chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo, pessoalíssimo,
e,
o que é pior, sente demais que o é (apud Barbosa, 1981, p.
179).
Paradoxalmente, são essas duas apreensões – o desequilíbrio e o
personalismo – que nos levam a tentar decifrar o universo limabarretiano.
O duplo diagnóstico do mal que enfraquece o livro reduz-se, na verdade, a
apenas um: o personalismo, causa dos desequilíbrios ao longo da obra do autor.
A sua tradução literária dá-se sob um olhar que conforma os objetos à natureza
de seus desejos, imprimindo ao mundo uma força centrípeta, pois os
acontecimentos são puxados por uma vontade que move o olhar sobre o real e
conduz o sujeito à impotência ao não conseguir a plena realização da dupla perspectiva
romântica: a certeza de predestinação, de julgar-se superiormente dotado e a
cobrança de uma estrutura social perfeita.
O percurso do protagonista situa-se no centro da retina, constituindo-se o
olhar em metáfora da apreensão do real. Sua irrupção no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha surge
impregnada de uma luz intensa voltada para a topologia social onde se fraciona
e fratura a humanidade. Em Lima Barreto, como veremos mais adiante, esse
balé classificatório, essa inserção na hierarquia social, apresenta uma
complexidade que salta aos olhos, principalmente por colocar em discussão o
espaço dos sem lugar, dos excluídos, da margem. Sua obra padecerá dessa
antinomia: é literatura de fora, porque incorpora pequena parte do
universo dos se -lugar, situando-se na proximidade de crônica social, ensaio e
jornalismo: e é uma literatura de dentro, por existir no interior de
relações linguísticas trabalhadas com fins estéticos; pouco importam os
aspectos factuais, históricos e sociais ao processo narrativo, se não estiverem
submetidos ao processo ficcional.
O percurso de Isaías Caminha é, inicialmente, determinado por um olhar
para cima, voltado para um plano superior que remete à concepção extremamente
idealizada da existência, ingênua o suficiente para acreditar no mérito
individual como moeda de trânsito rumo à ascensão social. Tal olhar corresponde
a um estado pleno, repleto de humanidade, natural (na acepção rousseauniana),
sem a perversão operada pelos mecanismos de cooptação ou rejeição social. Um
céu ao alcance do talento é o fio condutor do jovem interiorano esperançoso ao
ventre feroz da metrópole. Deslocar-se, assim, só se justifica,
obviamente, pela crença absoluta na qualidade do movimento que se dá por
excesso, por transbordamento das capacidades individuais, cujo afloramento e a
consequente consciência provocaram a sua expulsão do meio provinciano, onde se
tornara um sem lugar.
A mudança de locus converte
o olhar para cima em olhar para baixo. Esmagado ao peso da
perversa engenharia social urbana, Isaías nega, gradativamente, a qualidade de
sua apreensão crítica ao ganhar um lugar na redação do jornal onde ocupará as
modestas funções de contínuo. O sujeito perde a consciência de si,
transforma-se em objeto, muda o foco de sua visão: se contempla a realidade, é
sob o prisma do menos, da subtração, da falta, espaço próprio ao recalque e ao
rancor. O ponto máximo de sua dominação consiste em ver o mundo pelos olhos de. Degradado ao máximo, perde a
consciência, desconstrói o universo de referências, pensamentos e ideais,
assumindo a leitura feita pela ordem dominante como algo natural.
Claro está que tal classificação visa tão somente a entender o percurso de
Isaías Caminha, pois o olhar é obrigado a conformar-se ao real, ao incessante
movimento, ao devir, assumindo toda a sua complexidade.
O protagonista é capaz de manter certa margem de independência, mesmo sob
dominação, por isso esse olhar para baixo está eivado de
contradições. Quando o diretor do jornal, Ricardo Loberant (trata-se, na
realidade, de Edmundo Bittencourt, dono do jornal “Correio da Manhã”, modelo de
“O Globo” no romance), finalmente passa a enxergá-lo, Isaías Caminha denota uma
arguta recepção, atento à sua anterior inexistência, à sua não visibilidade. Constata,
com tristeza, que a classe dominante é incapaz de enxergar a humanidade, a
sensibilidade e a inteligência dos oprimidos. Aliás, é o olhar dominante que
perverte o universo dos indivíduos em massa, soldando múltiplas existências no
todo uniforme e anódino que envolve termos como "povo",
"multidão", "população" e correlatos. A classe dominante lê
o mundo como a sua casa, o olhar dela é, portanto, domesticador, tendendo a
transformar todos numa abstração amorfa, numa inarticulação humana. Isaías Caminha
não é ninguém. Ninguém o vê. Sua humanidade não existe, pois dependendo da
visão e esta, por sua vez, necessitando de uma posição social, não pode ser
visto.
Incorporado à redação do jornal como um "igual", Isaías Caminha passa
a viver, na parte final da narrativa, sob o influxo do "intimismo à sombra
do poder", categoria lukacsiana retomada por Carlos Nelson Coutinho (1974,
p. 4). Tal conceituação revela o mecanismo de cooptação dos intelectuais, uma
das mais fortes denúncias contidas no romance. O processo de dominação das
inteligências consiste em colocá-las a serviço do olhar dominante ou, na pior
das hipóteses, neutralizá-las com cargos ou favores. Isso é possível pela
presença, ainda seguindo as formulações arquitetadas no ensaio citado, da "via
prussiana" no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, caminho
caracterizado pela conciliação com o atraso, evidentemente representado pela
especificidade da formação econômica brasileira: sistema de exploração
colonial, sustentado por um modo de produção escravista, forma particular do
capitalismo como um sistema universal.
Entre as particularidades da nossa formação destaca-se a figura do agregado.
Sua importância reside no lugar que ocupa na estrutura social, uma posição
intermediária entre o elemento servil e o trabalhador assalariado. Sua
existência assinala a presença de uma categoria sem uma função precisa no
interior da organização produtiva. A falta de precisão implica no engendramento
de uma relação de dependência paternalista, capaz de dar corpo e vida a um
contingente de seres divididos em tarefas correlatas: moleques de recados,
capangas, comensais, domésticos, etc., todos, no fundo, seres deslocados,
intrusos, destituídos de um espaço próprio, misto de animal doméstico,
trabalhador de mil e uma utilidades e parente remoto.
Quando é apontada a importância concedida na obra limabarretiana à figura
excêntrica, torna-se necessário examinar a excentricidade não apenas na sua
significação intrinsecamente literária, mas investigar que tipo de relações
sociais expressa. A excentricidade, mais do que um traço de herói problemático,
parece recobrir um universo coletivo. À falta de formas consistentes e eficazes
de reversão da situação em que se encontram, os excluídos tendem a assinalar
uma resistência desordenada e caótica através da construção de uma diferença
que se faz no vazio, visando a quebrar o ordenamento burguês do mundo no
terreno da individualidade.
Tanto o excêntrico quanto o agregado constituem-se (isso quando não se fundem)
em elementos marginais, cuja lateralidade expõe tensões entre mundos distintos.
Isaías Caminha, tão deslocado quanto
Policarpo Quaresma, é o romance do fracasso exemplar da meritocracia, a
narrativa do apagamento de qualquer mudança de rumo. O mito da ascensão social
por meio da arte desmonta-se com a transformação do êxito em conformismo e
abdicação do vigor do caminho original.
2. A
inversão do olhar
Recordações do escrivão Isaías Caminha pode
ser dividido, sem risco de queda em esquematismos, em duas partes: na primeira,
o autor traça o percurso de um jovem oriundo do interior, disposto a tentar a
sorte na metrópole. Aqui o desenho esboçado é dotado de grande acuidade,
mostrando o seu progressivo entrelaçamento na atmosfera social e urbana; na
segunda parte, há um mergulho no microcosmo de uma redação de jornal, vista
como um espelho onde estão projetadas as imagens dos problemas característicos
da estrutura social brasileira. É justamente na passagem da primeira para a
segunda parte que o autor perde o fio da meada. Não propriamente pelo tom
panfletário atribuído à última parte, mas pela mudança operada no foco
narrativo:
Tão logo Isaías ingressa no jornal,
o romancista altera inteiramente
o seu foco narrativo, praticamente abandonando o
personagem e
concentrando-se na apresentação dos bastidores do jornal
(Coutinho, 1974, p. 29).
O fato de ter sido lido por parte da crítica como um mero roman à clef muito contribuiu para
um certo descaso, como se a única preocupação do autor fosse escandalizar a
sociedade.
O jornalismo, aliás, não serviu somente de tema a uma de suas obras:
Nos romances de Lima Barreto, há, sem dúvida, muito de
crônica:
ambientes, cenas quotidianas, tipos de café, de
jornal, da vida
burocrática, às vezes só mencionados ou
esboçados, naquela linguagem
fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero (Bosi, 1969, p.
95).
Seguindo a estrutura narrativa da obra, abordaremos as duas partes
separadamente.
2.1
– Um olhar sobre a cidade
O
primeiro capítulo do romance apresenta uma visão sobre o saber totalmente
idealista, chegando a confundir-se com essência divina: “– Sabendo, ficávamos
de alguma maneira sagrados, deificados...” (p. 35).
Essa visão supervalorizadora do conhecimento aparece como a possibilidade, de
outro lado, de redenção do protagonista, estigmatizado pela pobreza e por ser
mulato: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento
humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor” (p.
41).
O conhecimento é concebido sob a forma do estereótipo vigente à época: a figura
do doutor, do bacharel, símbolo maior de uma cultura eminentemente ornamental e
decorativa, representada através de detalhes meramente protocolares: diplomas,
anéis, sobrecasacas e cartolas. Inicia-se, portanto, a narrativa sob a égide da
paródia, voltada diretamente contra um dos desmazelos brasileiros, o predomínio
da verbosidade, do aparato verbal, do monumentalismo enciclopédico sempre como
uma das formas pomposas de exibição do poder. Guarda a introdução da narrativa
elementos que já apontam para a determinação dos próximos passos.
A decepção advinda do abismo entre o sonho e a realidade começa logo na viagem,
por ocasião de uma parada. Isaías Caminha toma contacto com a discriminação
racial, apesar de ainda ser incapaz de perceber a origem do tratamento
desigual. Sofre duplamente: pela discriminação e pela angústia em tentar
desvendar a origem e o significado desse ato. Nessa passagem fica patente o contraste
entre o temperamento hipersensível do protagonista, suas ambições e a
mesquinhez do mundo. De um lado, um “rapazola alourado”, prontamente atendido;
de outro, um mulato, desprezado, apesar de todos os seus predicados: “eu sentia
que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam
doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traço de sagacidade que
herdei de meu pai” (p. 45).
Se o seu olhar guarda doçura e sagacidade, seu primeiro companheiro no novo
ambiente – o penumbroso Laje da Silva (Paschoal Segreto, empresário famoso no
começo do século XX) – encontra resistências, pois: “o seu olhar cauteloso,
perscrutador e sagaz, junto ao seu ar bonacheirão e simplório, provocavam-me
desencontrados sentimentos de confiança e desconfiança” (p. 48).
Ainda é pelo olhar que o narrador apresenta a figura de Raul Gusmão: “Falava e
não nos olhava quase; errava os olhos – os olhos pequeninos dentro de umas
órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça qualquer de suíno” (p.
50).
Os olhos, aliás, são o “traço físico, por assim dizer obsedante” (Proença,
1976, 64) em Lima Barreto. Através deles o narrador expressa
toda a gama de sentimentos, alinhando-se à tradicional interpretação que os
considera como espelhos, fiéis reprodutores da alma, entendimento que se
coaduna perfeitamente com a preocupação do autor sobre a sinceridade, colocada
num lugar de honra entre as virtudes.
Ainda sobre a figura de Raul Gusmão (nome cifrado de João do Rio) note-se o uso
de um dos recursos expressivos de Lima Barreto na composição de personagens
construídos de modo grotesco: a deformação mediante a animalização dos seres,
processo nitidamente expressionista. Assim, o jornalista é visto como “uma
desencontrada mistura de porco e de símio adiantado” (p. 12).
Não é apenas sobre as criaturas que o narrador volta-se demolidoramente. As
instituições revelam-se também como destituídas de profundidade e interesse
pelos problemas nacionais. A desconstrução do universo político faz-se desde a
demonstração da irracionalidade de um tipo popular cooptado pelos poderosos – o
Chico Nove-Dedos, capanga do Senador Carvalho -, a exemplos dos numerosos
capoeiras envolvidos num sistema que os protegia e perseguia, simultaneamente,
até a exposição de uma galeria de políticos oportunistas e vazios. As palavras
com as quais descreve uma sessão na Câmara dos Deputados são magistrais:
Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia
a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas
desapegados
da sua eloquência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá ao
longe,
quase na minha frente, alguns viam cartões postais; um
outro, sob os
meus pés, isolado, no burburinho, escrevia febrilmente,
erguendo,
de quando em quando, a caneta para pensar; uma roda de
três,
à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo: ao fundo, ainda, mas
um
pouco à direita, um deputado gordo, com o
calor que com o
correr do dia se fizera forte, roncava
perceptivelmente. Fagot
falou cerca de meia hora; e,
quando deixou a tribuna, o
presidente já era um terceiro deputado, um velho com
pince-nez de aros de ouro (p. 13).
O efeito obtido é o de contraste, pois antes do discurso do
deputado Fagot o narrador descrevera, em termos ironicamente ultraidealistas, o
universo dos representantes do povo, criaturas divinas, dotadas de um saber
fantástico, dedicados ao seu ofício, versados em Quiromancia, Matemática,
Grafologia, Química, Teologia, Alquimia.
Após o discurso de Fagot (Pandiá Calógeras) soa como de um cômico
grotesco a entrada de Isaías nas dependências da Câmara com a cabeça cheia de
nomes de reis assírios, de faraós, de filósofos gregos, de generais romanos, de
romancistas e grandes personalidades de nossa história.
À imprensa e à Câmara dos Deputados, junta-se outra instituição: o exército,
diante do qual Lima Barreto sempre adotou uma postura crítica em função da
crescente influência que esta instituição veio a desfrutar na República. Ela formulou
e impôs uma concepção de Positivismo que possuía caráter seletivo, elitista,
contra a qual Lima Barreto veio a se chocar, apesar de seu namoro com a
corrente de Auguste Comte. O bonapartismo positivista republicano afasta
profundamente o exército do autor de Policarpo Quaresma, alimentando ainda mais
o seu antimilitarismo. A passagem de um desfile militar serve para a formulação
de discurso revelador da existência de dois Brasis:
Os oficiais muito cheios
de si, arrogantes, apurando a sua elegância
militar; e as praças bambas, moles e trôpegas
arrastando o passo
sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente,
tendo as
carabinas mortíferas com as
baionetas caladas, sobre os ombros,
como um instrumento de castigo.
Os oficiais pareceram-me de
um país e as praças de outro (p. 14).
Os oficiais, destarte, constituiriam uma casta privilegiada, imune
aos clamores populares. Alheamento semelhante ao revelado pelo deputado Castro,
indiferente às solicitações de Isaías, apesar da carta de recomendação trazida
e assinada por um coronel ligado ao político.
O narrador inicia o quarto capítulo dirigindo-se diretamente aos leitores, como
se quisesse colocá-los no interior dos meandros intestinos dos bastidores
políticos com suas manobras, tráfico de poder e jogo de influências.
Frustrado em suas pretensões pelo deputado Castro, Isaías passa pela maior
humilhação ao ser preso sob a acusação de furto, em que se mesclam preconceito
de classe e discriminação racial, devido à sua condição de mulato pobre. A cena
de seu interrogatório serve para revelar o comportamento do aparelho policial
diante da questão racial e, também, da questão social, pois o narrador acrescenta
à ação do protagonista duas outras, de natureza diversa: o a subordinação da polícia à classe dominante,
num jogo de encobertamento e cumplicidade entre ambas; e as relações promíscuas
entre a elite e o submundo (a íntima conexão entre o senador Carvalho e o marginal Nove-dedos)..
Em sua crítica à sociedade, Isaías volta-se ainda contra a concepção literária
vigente, deixando claro que o importante é a literatura funcionar como meio de
expressão das ideias relevantes ao progresso social. Daí sua ojeriza aos
literatos:
São em geral de uma lastimável limitação
de ideias, cheios de
fórmulas, de receitas, só capazes de colher fatos
detalhados e
impotentes para generalizar, curvados aos fortes e às
ideias
vencedoras, e antigas, adstritos a um
infantil fetichismo do estilo
e guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo
critério
de beleza (p. 15).
Em Isaías Caminha é
frequente a voz do narrador ser abafada pela voz do autor, pois é o próprio
Lima Barreto que exprime suas ideias a respeito de literatura, confessando
leituras, fontes e influências, buscando em outros horizontes um instrumental
adequado à expressão da realidade brasileira, encoberta pela estética infantil
do malabarismo verbal e da pirueta estilística. É o autor quem afirma:
“Entretanto, quantas dores, quantas angústias! Vivo aqui só, isto é, sem
relações intelectuais de qualquer ordem” (p. 16).
Nessas palavras Lima Barreto revela a consciência do seu insulamento, de sua
especificidade avessa à norma reinante.
Isaías Caminha sem emprego, longe de sua família e da cidade natal, encontra-se
só.
O encontro com Abelardo Leiva (Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro de
meu tempo) e com Agostinho Marques (na verdade, o advogado Pedro Ferreira
do Serrado) parece encaminhar a ação romanesca a um desdobramento progressivo,
ao introduzir uma discussão de natureza social mais ampla, confrontando
formulações positivistas com ideias anarquistas e socialistas. No entanto, opta
por um estudo de caso, anunciado na acerba crítica de Leiva à imprensa.
É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas
inteligências
podem colher-lhe a força e a essencial ausência
da mais elementar
moralidade, dos mais rudimentares
sentimentos de justiça e honestidade!
São grandes empresas, propriedades de
venturosos donos, destinadas
a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e
a cuja
inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os
caracteres para os seus desejos inferiores, para os
seus atrozes
lucros burgueses... (p. 17).
2.2
– Um olhar sobre o microcosmo
A segunda parte do romance processa-se, praticamente no interior
do jornal O Globo, onde, graças à intervenção de Ivã Gregoróvitch Rostóloff
(Mario Cattaruzza) , personagem que parece saída das páginas de Doistóievski,
consegue empregar-se como contínuo. A redução do universo narrativo, sua
concentração num ambiente menor, o abandono ao ritmo progressivo na
constituição do protagonista, o voltar-se do foco narrativo para uma
constelação de personagens formadora do universo do jornal representa a
acentuação de traços expressionistas, deformadoras e caricaturais da narrativa.
Principia por uma descrição dos componentes da redação. Ricardo Loberant, o
diretor do jornal, é apresentado como homem “sem talento, sem pertinácia e
paciência” para conseguir afirmar-se por mérito próprio, razão pela qual
recorre à paixão para conseguir seus objetivos. O primado da vontade acentua os
contornos de seu paternalismo, expressão das relações sociais caracterizadoras
da “via prussiana” ou, seguindo outra vertente ideológica menos explorado, de um
“estado patrimonial”, conforme a conceituação desenvolvida por Sérgio Buarque
de Holanda. Se o diretor do jornal representa os interesses privados,
particulares, o seu relacionamento com o poder público faz-se mediante a
diluição completa da fronteira entre o público e o privado, transformando-se
aquela numa estrutura apropriada pela classe hegemônica. No seio de tanta
desonestidade e falta de nitidez pode-se entender a filosofia do jornal: “era
só fechar os olhos e estender a mão” (p. 18).
Chama a atenção na caracterização da personagem a total ausência de qualquer
linha de pensamento. Trata-se de um viveur
típico, sempre enfronhado de u, jornal, visto apenas como mercadoria, objeto
capaz de produzir ricos dividendos.
Aires d’Ávila, pseudônimo de Pacheco Rabelo (Pedro Leão Veloso Filho, que usava
o pseudônimo de Gil Vidal), é o redator-chefe, o braço direito do diretor,
descrito com traços caricaturais: “Havia na sua marcha um grande esforço de
tração e um monóculo petulante na face imóvel não lhe diminuía o peso da
figura” (p.19).
Leporace (Vicente Piragibe) torna-se sumidade em literatura graças não a um
profundo conhecimento do assunto, mas devido à sua natureza respeitosa e
serviçal diante do diretor.
Raul Gusmão, Gregoróvitch e Oliveira (Pedro da Costa Rego), este último tido
como “parvo e besta”, são introduzidos na primeira parte da narrativa.
Extremamente sugestiva é a caracterização de Floc (trata-se de João Itiberê da
Cunha, o JIC):
entrou o fino, o elegante, o diplomático, o macio Frederico
Lourenço do Couto, com a sua linda barba perfumada e o seu grande
queixo erguido e atirado para adiante como um aríete
encouraçado.
Vinha todo perfumado, de olhar
lustroso, desprendendo essências,
com o peitinho da camisa a brilhar imaculadamente e
um grande botão
coral ao centro, rodeado de brilhantes (p. 20).
Com tantos predicados, Floc serve para o autor implícito expor ao ridículo
determinado tipo de crítica literária em voga nas décadas iniciais do século
passado:
A sua crítica não obedecia a nenhum
sistema; não seguia escola
alguma. As suas regras estéticas eram as suas relações
com o
autor,
as recomendações recebidas, os títulos universitários, o
nascimento e a condição social. Elogiava
nefelibatas, se eram de sua
amizade, se eram ‘limpos’; detratava se não
eram. Tinha, além, dois
princípios: a aristocracia da arte e
a fulminação dos nulos. Entendia, a
seu modo aristocracia
da arte, isto é, arte feita pelos aristocratas como
ele, cujo pai tivera na primeira
mocidade uma taverna em Barra Mansa
(p. 21).
Também o sistema literário sofre as consequências do desenvolvimento através da
“via prussiana”. Falta-lhe organicidade e continuidade. As obras apresentam-se
desligadas dos problemas contemporâneos. A literatura torna-se um vazio, pasto
de aventureiros, colunistas sociais e damas da sociedade, um amável e doce
sorriso. O paternalismo preside as relações entre a crítica e o artista,
corrompendo o que há de melhor. O crítico é o olhar dominador, tradução
cultural do poder, por isso elide o negro e o mulato do plano social; quando
incorpora um autor que consegue furar a teia de silêncio (um Machado, por
exemplo) o faz com uma preocupação (totalmente ausente nos demais casos)
obsessiva no “literário”: isto é, incorpora o autor, não a sua cor. Nessa
crítica não existe a preocupação com nenhum fundamento teórico.
Além dessas personagens, há uma galeria de tipos minúsculos: Lobo (o gramático
Cândido Lago), o consultor gramatical; Losque (provavelmente Gastão Bousquet) e
Lara (para alguns, Bastos Tigres; para outros, Antônio Sales), humoristas;
Meneses, o único que estudava; Oliveira, admirador extasiado de Ricardo
Loberant; Rolim (Francisco Souto), analfabeto, mas lindo como narciso;
Costa(?); Barros(?), agente de anúncios; Adelermo Caxias (Viriato Correia), um
intelectual amaciado pela pressão do poder. Lugar destacado ocupa Gregoróvitch:
era da artilharia. Com o seu estilo desconjuntado e a sua
violência
injuriosa, abria brechas nas linhas adversárias e
dizimava-as de longe.
Estrangeiro, nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem
a
sentindo pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque tinham uma
violência
desmedida (p. 22)
Completa o quadro Alberto Pranzini (Giovani Fogliani), o gerente, figura
lateral, ocupado exclusivamente com os lucros.
Ao pequeno mundo do jornal acrescenta-se a figura singular de Veiga
Filho, “o grande romancista de luxuoso vocabulário”, paródia a Coelho
Neto, a quem não perdoa a chinesice literária.
A crítica à literatura dominante: o leve e adocicado maneirismo social de Floc;
o intenso verbalismo de Coelho Neto; e a literatura enquanto expressão do “sorriso
da sociedade”, acrescenta-se a crítica à tendência predominante na linguagem da
época, o exagerado apego o um falso purismo gramatical, entrevisto nas palavras
de Lobo, o fiscal da língua:
- Brasileiro, doutor! falou mansamente o gramático. Isto que
se
fala aqui não é língua, não é nada: é um vazadouro de
imundícies.
Se Frei Luís de Souza ressuscitasse, não reconheceria a sua
bela
língua nessa amálgama, nessa mistura
diabólica de galicismos,
africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, hiatos,
colisões...
Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disto: os romanos
desapareceram, mas a sua língua é estudada (p. 23).
Uma vez introduzido no microcosmo jornalístico, Isaías passa a conformar-se em
consonância com o ambiente, assimilando as qualidades do meio onde exerce a sua
atividade. Testemunha a manipulação da insatisfação popular através de uma
campanha dirigida, no fundo, por mesquinhos interesses pessoais. Presencia a
morte de Floc, um suicídio por impotência. A morte do crítico significa a sua
ascensão no jornal. Ela o aproxima do diretor, pego em flagrante num ambiente
pouco recomendável. Essa aproximação equivale ao apagamento completo de seu
olhar, a sua absorção pela lógica do sistema diante do qual tivera, até então,
uma consciência crítica, apesar das modestas funções subalternas. O olhar do
diretor do jornal e o de Isaías não se cruzam, são imiscíveis; um acaba por
deslocar o outro, apagando-o. Não é necessário dizer qual.
3 –
Conclusão
Preso à teia do poder, Isaías Caminha desfaz-se de seus projetos pessoais. No
entanto, o processo de cooptação não é linear e prontamente resolvido. A noção
de superioridade conserva-se, apesar de tudo, juntamente com um idealismo
enfraquecido ao extremo.
Enquanto jornalista assume o império da língua, exemplarmente vislumbrado por
Barthes: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem
reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo
não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, s/d, p. 14).
Torna-se, portanto, uma das vozes do poder: “...por toda parte, vozes
‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o
discurso da arrogância” (Barthes, s/d, p. 11).
De sua autonomia, de sua posição fora do sistema de dominação, converte-se em
membro ativo, pois o poder dissemina-se por toda parte: “...o poder ( a
libido dominandi) aí está,
emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora
do poder” (Barthes, s/d, p. 10).
O discurso de Isaías Caminha é uma caligrafia em ruínas, o percurso
da deserção e do amesquinhamento: discurso de perda e supressão da
individualidade. No entanto, nos fragmentos de sua individualidade expõe as
vísceras de seus sonhos, isto é, aponta para uma outra possibilidade de encenação,
um novo deslocamento de signos (menos policialescos e pernósticos),
liberados de catedralescos compêndios de raridades léxicas e de uma
estilística da futilidade. Do interdito, do lado maldito, da zona de penumbra
da cidade, a ardência instala no centro do olhar a lateralidade perigosa e
subversiva dos fora de cena.
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