Na cidade dos homens invisíveis *
O romance Os ratos, de Dyonélio Machado, escrito em 1935, possui uma narrativa densa, na qual o mundo das ruas emerge como um universo de perda e supressão da individualidade. Focaliza o protagonista ─ Naziazeno Barbosa ─ como uma criatura desenraizada, perdida no meio da multidão. A cidade assemelha-se a um monstro devorador dos seres que a viabilizam, assumindo-se, portanto, como espaço de irrealização pessoal. Arquitetura tentacular, submete seus hóspedes a um rol interminável de pequenas tarefas inexpressivas e amesquinhadoras da natureza humana. O fracionamento da personalidade, fruto da redução da existência a uma lenta, inexorável e minuciosa elaboração de um complicado jogo de diminutos atos de sobrevivência, surge como consequência inevitável de arquitetura de estrutura labiríntica, engenharia desenhada para a sua perda. A dimensão microscópica do processo de perda em que todos atos dissolvem a possibilidade de qualquer caminho reduz pulveriza a consciência, fazendo-a se dispersar na nebulosa de ações menores destinadas ao prolongamento do estado de nulidade..
As primeiras linhas da narrativa já assinalam a presença de poderosa pressão social: a vizinhança, testemunha das situações de conflito vividas pelo casal Naziazeno e Adelaide. Pressão suficientemente forte para alterar o comportamento de ambos, como fica explícito na passagem: "Olha, que os vizinhos estão ouvindo” (Machado, 1984, p. 9).
Tímida tentativa da mulher de contornar as brigas conjugais. Preocupação voltada para a realidade externa, pois o mal vem de fora. Não só possui caráter externo: sua exterioridade é acrescida de um caráter rotineiro ─ o leite diário necessário à sobrevivência do filho. Aqui surgem as duas questões fundamentais que alimentam a tessitura do romance: 1) o mundo exterior ─ universo das ruas que trazem sofrimentos e provocam a escravidão daqueles que as percorrem; 2) o mundo interior ─ a psicologia do ser que habita a cidade, apresentado com um perfil destituído de energia, desfibrado, cuja ininterrupta mobilidade física não possui, no entanto, equivalência psíquica, sua personalidade é antes de tudo marcada por irritante falta de iniciativa, inscrevendo-o no mesmo círculo do autômato, criatura desenraizada no chão social, incapaz de agir, dotado de uma natureza flutuante, desprovida de autonomia. Seus atos e intenções são conformados pela multidão que o cerca e conduz.
A tensão entre o casal e a vizinhança reforça o conflito entre Naziazeno e a esposa. Esta tece ponderações que o puxam à realidade, tenta despertá-lo para a ação, pois é justamente a imobilidade a causa de todos os problemas enfrentados pelo casal. Contudo, Naziazeno opõe-lhe tenaz resistência sob a forma de evasivas minimizadoras dos problemas. Valendo-se dessa estratégia, subestima a ameaça feita pelo leiteiro, atenuando os efeitos negativos da dívida com o argumento de que a tarefa de cortar um fornecimento é muito difícil, ou dissimula não ter escutado o leiteiro proferir a palavra ‘abuso’; ou joga a culpa do mal que o assola na mulher a quem acusa de fazer um escarcéu por causa de algo sem maior importância. Às vezes lança mão de acusações injustificadas, como a de que há muito desperdício, muito esbanjamento em casa. Há, ainda, a relativização da perda do gelo e da manteiga (fato motivado pela miserabilidade do casal), ambos colocados na categoria de supérfluos. Ou seja, tenta de todas as maneiras esvaziar a gravidade da situação em que se encontra, pensa, assim, eximir-se de sua responsabilidade.
A linguagem é uma tática defensiva em que o sujeito assume caráter neutro, código justificador de passividade, uma vez que se subtrai aos atos pelos quais é responsável. Para tudo existe uma explicação lógica capaz de isentá-lo de qualquer sanção moral e transformá-lo em vítima: seu padecimento é sempre injusto e resultado de algo que escapa ao seu campo de ação. As dificuldades enfrentadas não são percebidas como a consequência natural do "deixar acontecer".
A visão dirigida à realidade circundante, ao longo do segundo, capítulo possui qualidades inerentes ao voyeur. Naziazeno observa, projetando-se na imagem que vê, conserva, contudo, sua impotência para operar a transformação e a superação de seus problemas econômico-existenciais.
Contraparte à sua constituição psicológica, Naziazeno revela, no plano objetivo de sua existência, ser a continuação e a degeneração da figura do agregado (1), figura sempre na órbita de outros seres. A perda da autonomia vem sob a forma de um movimento que se dá mediante um arrastão exercido por uma série de circunstâncias que o conduzem aleatoriamente. O protagonista, às vezes, revela consciência embrionária de sua debilidades: "Passa-lhe pela cabeça que vai assumir a atitude de cínico e isto pouco o perturba" (p. 21); "Ele precisava de um ser forte a seu lado" ( p. 26).
O que não o impede de procurar fora de si explicações, ou atenuantes, para tais fraquezas: "A sua mulher encolhida e apavorada é uma confissão pública de miséria humilhada, sem dignidade ─ da sua miséria” ( p. 26).
Atribui, dessa maneira, à mulher uma timidez e falta de energia que são atributos dele. Mais um dos inúmeros mecanismos de fuga com os quais se amolda à sujeição em que vive.
A ameaça do leiteiro é um leitmotiv a martelar todo o périplo do protagonista. A descrição da realidade objetiva do mundo que o cerca e o envolve no interior do bonde, um dos meios de peregrinação de que se vale, serve de contraponto a um estado mental extremamente confuso, no qual se embaralham noções de uma geometria desarticulada com uma memória rarefeita, lacunosa. O ponto de vista expressa com clareza a sua posição de voyeur. O levantamento dos seres à sua volta é sempre por oposição a sua postura medrosa, de homem encurralado. O olhar da Naziazeno observa o mundo "de baixo". Importante observar a série de associações sonoras, detonadas pela campainha do bonde, cujo som evoca a campainha do diretor, esta, por sua vez, remete à ameaça efetuada pelo leiteiro. Tais associações revelam o barulho como elemento perturbador, convertem a palavra ameaçadora, a ordem e a cobrança num som metálico, desprovido de humanidade. Fora do bonde, Naziazeno julga-se solto no seu ambiente natural:
Longe do bonde (que é um prolongamento do bairro e da casa) não tem mais a “morrinha" daquelas ideias... Naquele ambiente comercial e de bolsa de mercado, quantos lutadores como ele!... Sente-se em companhia, membro lícito duma legião natural (p. 29).
A ilusão de liberdade conferida pelo espaço amplo e aberto é negada pela maneira através da qual se inscreve no espaço social. A instituição de um código crítico capaz de registrar suas numerosas contradições é produzida a partir da multiplicação de termos utilizados entre aspas ou grifados, vocabulário revelador de uma contra-escritura, usada para reforçar o sentido das palavras, destacá-las, mas também dotada de um significado maior, voltado para uma pontuação crítica da narrativa e para a afirmação de um clima acentuadamente criado sobre a indeterminação de atos e ideias.
Espelho no qual contempla seus gestos, Duque, alvo de toda a sua admiração, é uma criatura das ruas. Ele é caracterizado como "...o agente, o corretor da miséria. Conduz o negócio serenamente. Tem a propriedade de despersonalizar a coisa (p. 31). Mais adiante esse traço é reforçado: "Ele olha muito, ouve muito, aparece muito, mas só diz uma ou outra coisa, só o necessário e o viável" ( p. 31).
A relação entre ambos reveste-se de características próprias ao relacionamento entre dominante e dominado: "Mas como acompanha com solicitude o amigo em situação difícil ao agiota ou à casa de penhores. É ele [Duque] quem fala" (p. 29).
As qualidades de Duque estão todas relacionadas à habilidade na arte da negociação, à capacidade em conseguir "cavar", "dar um jeitinho", resolver os problemas de ordem financeira através de uma série extensa de recursos e expedientes. Por isso é ele quem conduz, determina os passos, o traçado, o caminho de Naziazeno. Mais ainda: é quem fala, ocupando a voz do outro, executando ações e elaborando pensamentos. A Naziazeno resta apenas um caminhar ao lado, mudo, ou um andar atrás, solícito e aéreo.
Ao fazer circular irresolução pelas ruas, Naziazeno adquire feições pegajosas, transforma a sua apatia em ação viscosa. Daí a valorização tática das formas verbais de significado parasitário: "agarrar-se", "morder" e outras. O ato de pedir adquire uma coloração violenta. Internamente, obriga o interlocutor a resolver seus problemas. Cerca-o, produzindo um assédio insuportável para as vítimas de suas investidas. Traça, via imaginação, todas as ações de que não é capaz, criando um mundo dominado pela fantasia, saída à complexidade de um real que o amedronta.
A multidão que transita pelas ruas ora é encarada como abrigo, refúgio, proporcionando ao ser, através do contato físico com os demais seres, seu retorno a um estado natural, ora, no entanto, surge como algo assustador, parecendo-lhe inimiga; um monstro no interior do qual todos os indivíduos se perdem, todas as ideias são apagadas pela despersonalização, todos os gestos esvaziam-se de individualidade. Essa mudança brusca de sensações qualifica o percurso de Naziazeno como oscilante, traçado humano permeável ao movimento das ruas, exageradamente poroso às vozes que nelas circulam desencontradas, tumultuadas, fluídicas. Caráter não totalmente desconhecido à própria personagem: "...não era raro vir-lhe um remorso, uma acusação contra si mesmo, contra esse espírito inferior de esquecer prontamente, de 'achar' no ambiente aspectos compensadores, quadros risonhos" (p. 36).
Em suas andanças através de bancos, cartórios, cafés, repartições, casas de penhores e antros de agiotas, há todo um complexo mental que institui numerosos filtros redutores dos efeitos negativos de suas ações ou daquelas que o atingem, são eles que operam a conversão das negativas numa encenação de conveniências, num teatral jogo de máscaras. A linguagem do próprio romance é dotada de propriedades cênicas. Código teatral cuja marcação é traçada pela imaginação de Naziazeno. Há inúmeros desenhos mentais nos quais encena diálogos, pedidos, recusas. Palco de desejos e impotência, o imaginário teatraliza a vida (há mesmo momentos em que Naziazeno ensaia concretamente o modo e o discurso de abordagem de suas vítimas). Os últimos capítulos do livro demonstram cabalmente essa perspectiva. Imerso na noite, estendido sobre a cama, habitando uma invisibilidade relativa e radicado numa imobilidade momentânea, Naziazeno dirige o espetáculo dos ratos, dando-lhe a dramaticidade necessária. Por isso: "De quando em quando 'vê' a cozinha... a mesa, com a panela e o dinheiro, no meio dum silêncio, daquela atitude imutável... esperando..." (p. 150).
Esse olhar apreende o mundo em minúcias, agarrando-se desesperadamente a cada detalhe, sem ousar alterá-lo em nada: "Enche-o de uma emoção triste qualquer mudança, qualquer nova situação. Quer as coisas contínuas, imutáveis..."( 1984, p. 70)
Desenvolvido em torno da dívida contraída perante o leiteiro, Os ratos incursiona pelas ruas a partir de um ângulo diferente do apresentado em outros romances urbanos produzidos também na década de 30, a exemplo de Parque industrial, de Pagu, e Marafa, de Marques Rebelo.
Parque industrial é um "romance proletário" e partilha com o ciclo de romance nordestinos da época o mesmo clima de denúncia, atingindo uma dimensão panfletária em que circulam personagens saídos do mundo fabril. O percurso operário, o trajeto da massa explorada e do lumpen-proletariat fundem-se ao do narrador que assume integralmente a ideologia das personagens comunistas. A questão da topografia social, por intermédio da qual a cidade é apresentada como geografia da exploração, reduz o rigor da narrativa, preocupada em excesso em constituir-se numa escrita de convencimento, preocupada em operar a conversão do leitor à determinada ideologia ou pelo menos provocar indignação com as questões suscitadas pela obra. Excessivamente tributário dos romances de tese naturalistas, o livro sofre um engessamento ficcional, responsável pela diluição das passagens mais ousadas.
Marafa, ao contrário do romance anterior, é um romance de linhagem, retrato de costumes descendente de Manuel Antônio de Almeida e de Lima Barreto. Possui dois planos na narrativa: Teixeirinha e o bas-fond versus Tommy Jaguar e a pequena-burguesia em ascensão. Esse jogo de claro e escuro, essa impossível convivência entre a cidade diurna e a noturna é o centro de gravidade da obra. A cidade é o espaço do confronto, lugar de embates, onde a malandragem, vista como a encarnação do mal, e o bom-mocismo, exaltação dos atributos pessoais dos que vêm de baixo, na tentativa de romper a barreira da miséria, excluem-se mutuamente.
Já em Os ratos a multidão é considerada massa humana que cerca, imprensa, leva o indivíduo, transformado em criatura carente de autonomia, com os seus passos marcados no mesmo compasso dos outros, consequentemente mecanizados, automatizados. Não há a contínua reinvenção do mundo, a diária criação de fatos e ideias. A intensa e incessante movimentação de Naziazeno é um caminhar em círculos voltado para um ponto fixo. A realidade é algo a ser mordido, sugado. Daí a aderência pegajosa aos seres que a constituem, deslizando inconscientes pelas ruas. Morder é arrancar a energia do outro. É, ainda, sinônimo de "cavar", gesto voltado para baixo, buraco feito no chão, ação que rebaixa e anula a criatura, expediente misto de esperteza vagabunda e degradação moral. Os prováveis salvadores de Naziazeno são desentocados, arrancados de suas casas, de seus negócios ou de si mesmos, e chamados resolver o "caso". Romaria abúlica, a jornada é uma expiação pública, desolada mendicância feita a amigos e conhecidos. Então, a cidade é o espaço de uma dança sombria e demoníaca, um balé de andrajos e omissão, cujos movimentos circulares, centrados num ponto imóvel, conduzem ao abismo no qual sucumbem razão e emoção.
Estranheza e invisibilidade
Em Modernidade e ambivalência, Zygmunt Bauman analisa o surgimento de uma categoria nova a partir da oposição e da relação assimétrica entre amigos e inimigos: aqueles, criados pelo que denomina pragmática de cooperação: estes, construídos pela pragmática de luta. A nova categoria é formada pelo estranho, elemento que desmascara a constituição antitética que cria a rede de relações sociais. O estranho é considerado como o principal representante da família dos indefiníveis, unidades que escapam ao poder da racionalidade ordenadora e legitimadora do sentido do real.
O estranho possui uma natureza híbrida:
O estranho entra no mundo real e se estabelece aqui, tornando-se assim relevante − ao contrário daqueles meramente 'não familiares' − quer seja amigo ou não. Ele entrou no mundo da vida sem ser convidado, com isso lançando-me para o lado receptor da sua iniciativa, transformando-me no objeto da ação de que ele é o sujeito − tudo isso, lembremos, é marca notória do inimigo. Mas ao contrário de outros inimigos 'sinceros', este não é mantido a uma distância segura nem do outro lado da linha de batalha. Pior ainda, ele reivindica o direito de ser um objeto de responsabilidade − o bem conhecido atributo do amigo (BAUMAN, 1999, pp. 68-69).
No drama urbano pequeno-burguês há sempre um componente híbrido: o resultado da luta, por vezes desesperada, entre a fuga da ameaça frequente da proletarização e a aspiração de ingresso numa ordem superior, representada pelo universo burguês, cria um indivíduo cuja a existência é modelada por forças sociais centrífugas. Portanto, o estranho representa uma síntese de elementos incongruentes e uma alteridade ressentida de proximidade e distância. Assim, o estranho é um desajustado incômodo e incontrolável:
O pecado irredimível do estranho é, portanto, a incompatibilidade entre a sua presença e outras presenças, fundamental para a ordem do mundo − o seu assalto simultâneo a várias posições instrumentais cruciais ao esforço incessante de ordenação (BAUMAN, 1999, p. 70).
Exemplo ilustrativo da recusa do estranho em permanecer confinado em territórios longínquos e demonstrar sua natureza perturbadora é o encontro/desencontro entre o protagonista de Os ratos e o diretor da repartição onde exercia funções subalternas.
O primeiro plano para pagar a dívida de cinquenta e três mil réis com o leiteiro foi solicitar o favor ao superior hierárquico que já o socorrera com a quantia de vinte mil réis em outra ocasião: quando acabara de ser nomeado e ainda não o conhecia, o que deixa bem nítida a condição de eterno pedinte do protagonista. A atitude de Naziazeno, contudo, é ambivalente, pois tem consciência da má fama que o acompanha:
Sim, Naziazeno sabe que os empregados mais graduados troçaram respeitosamente o diretor, que este (que é um moço) meio encabulou, alegando que não conhecia o caso, que era ainda estranho ao meio, que "noutra" não cairia, pois era realmente qualquer coisa assim como censurável estar cultivando esses exemplos de desregramento ou de perdularismo sistemáticos... ( p. 29).
Porém não desiste de "agarrar-se" à lembrança do antigo gesto de solidariedade. A escolha do verbo pronominal reforça a construção de uma figura parasitária, desprovida de luz, de vontade própria, de perspectivas ou de projeto de vida, voltada de modo exaustivo e exasperante para a superação de estreitos limites da existência. A atitude do pobre barnabé é a de um animal encurralado à espreita de sua presa. Vive a angústia da espera: cerca, indaga, procura encontrar o diretor. Há um caráter teatral na saga de Naziazeno: ensaia seus atos e discursos, ao mesmo em que constrói no plano imaginário a cena em que pretende inserir seus gestos. A todo momento "vê", "olha" ─ constrói no palco das ideias aquilo que não consegue realizar na prática.
Quando surge o momento propício à abordagem, transparece a total falta de estratégia de Naziazeno ─ mesmo tendo noção da sua fama de pedinte na repartição em que trabalha, não consegue arrancar um centavo do chefe. O resultado só podia ser desastroso. A reação marca os limites da complacência burguesa:
− O sr. pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? (O diretor diz essas coisas a ele, mas olha para todos, como que a dar uma explicação a todos. Todas as caras sorriem.) Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas, e é o que me basta... (Risos.) ( p. 47).
A negativa corresponde à incapacidade do personagem conseguir articular a solução de seus problemas financeiros mediante a elaboração de um plano próprio, resta-lhe, assim, buscar o auxílio de quem possa encontrar uma saída para ele. Como um autômato, procura um messias para os males imediatos. A resposta do diretor ecoa em seus ouvidos, recorre mais uma vez ao recurso do esvaziamento do peso das palavras, só que desta vez o esforço é frustrado; acaba por admitir que a palavra e a figura do diretor esmagaram-no.
A resposta do diretor se constrói com um olhar destinado à plateia, desviado, portanto, do pobre interlocutor, anulado socialmente e tornado invisível, apesar de ser uma voz entre aqueles indivíduos.
Parece faltar a Naziazeno a compreensão de algo explicitado didaticamente na recusa do empréstimo: é um ser portador de todas as características do estigma:
O conceito [de estigma] pode ser aplicado mais amplamente a todos os casos quando uma característica observável − documentada e indiscutível − de certa categoria de pessoas é primeiro salientada à atenção pública e então interpretada como um sinal visível de uma falha oculta, iniquidade ou torpeza moral (BAUMAN, 1999, p. 77).
A resposta é o julgamento definitivo, já antecipado pela imagem de Naziazeno junto aos colegas de repartição: uma espécie de pedinte profissional. A pobreza é a marca de exclusão social. A desastrosa iniciativa de Naziazeno revela o processo de segregação:
A arte do desencontro é primeiro e antes de mais nada um conjunto de técnicas que servem para desertificar a relação com o Outro. Seu efeito geral é uma negação do estranho como objeto moral e sujeito moral (BAUMAN, 1999, p. 72).
A existência do estranho é opaca, sem transparência. Naziazeno, na qualidade de estranho, é o seu próprio problema. Seu poder de afirmação, sua condição humana, seu percurso profissional são deslegitimados e declarados aviltantes.
O processo de degradação é progressivo. Detonado pela cobrança do leiteiro, aumenta com a negativa do diretor da repartição e torna-se maior ainda, após a atitude condescendente de Costa Miranda que lhe empresta cinco mil réis com soberba indiferença ─ mais para livrar-se do intruso ─ , quando Naziazeno decide procurar o Dr. Romeiro: a cena é grotesca, porém expressa com clareza a estratégia do pobre barnabé. Modesto, insinua pedir um favor, ao mesmo tempo em que se desculpa por ainda não haver pago um vale já vencido. Expõe seus problemas num tom de crescente desespero, apesar das constantes negativas do interlocutor. A obstinação do protagonista é tamanha que o comerciante tenta despedir-se, todavia Naziazeno põe-se a caminhar na mesma direção. Resta ao dono da grande casa atacadista correr para livrar-se do assédio, tão insuportável que o Dr. Romeiro chega a pegar um bonde em movimento. Essa frustrada tentativa representa o último ato de Naziazeno, diante do completo malogro de todas as suas iniciativas ─ pensadas ou fortuitas ─, perde a autonomia de ação e toda a responsabilidade para a resolução do seu problema é transferida para Duque, personagem que só participa da trama romanesca a partir do esgotamento dos recursos do protagonista.
Naziazeno anula-se totalmente, segue a reboque do amigo à procura de todos agiotas conhecidos ─ Rocco, Assunção, Zeferino, Martinez etc. ─ com o propósito de, mediante a negociação de um anel de bacharel pertencente a Alcides, outro companheiro de infortúnio, conseguir recursos suficientes para quitar a dívida com o leiteiro.
Graças à habilidade de Duque, finalmente Naziazeno pôde voltar para casa. O retorno ao lar é vivido como um triunfo: conseguir o dinheiro transforma-o, faz com que cresça diante da mulher e confere aos gestos, reveladores de uma situação econômica insustentável, uma grandeza, uma paz e uma harmonia quase burguesas: pela primeira vez na narrativa o protagonista parece ter um pouco de tranquilidade.
A aparência de calma é desmascarada pela vigília de Naziazeno, espécie de sonhar acordado capaz de misturar a realidade noturna (a ação dos ratos no interior da casa), às reminiscências do dia (a circulação entre tantos outros ratos ─ não é outra a razão de o narrador animalizar personagens atribuindo-lhes focinhos em vez de rostos) e à consciência insone (a anulação do ego devorado por seus demônios - ratos de outra espécie).
O aparente final feliz, afinal o protagonista consegue alcançar meu objetivo modesto e banal:
Depois, ele ouve que lhe despejam (o leiteiro tinha, tinha ameaçado cortar-lhe o leite... ) que lhe despejam festivamente o leite. (O jorro é forte, cantante, vem de muito alto...) − Fecham furtivamente a porta... Escapam passos leves pelo pátio... Nem se ouve o portão bater... E ele dorme (p. 157).
é apagado pela consciência de ser a sua existência um campo de irrealização de qualquer projeto individual e pela presença, ao longo das angustiosas e angustiantes vinte e quatro horas (influência de Ulisses, obra revolucionária de James Joyce), de uma rotina sombria e desumana de sobrevivência, de um desejo violento e invencível de anulação da própria personalidade, como fica patenteado na última revelação do estado de espírito de Naziazeno:
Está exausto... Tem uma vontade de se entregar, naquela luta que vem sustentando, sustentando... Quereria dormir... Aliás, esse frio amargo e triste que lhe vem das vísceras, que lhe sobe de dentro de si, produz-lhe sempre uma sensação de sono, uma necessidade de anulação, de aniquilamento... Quereria dormir... (p. 157).
A vontade de dormir concreta, física, produzida pelo cansaço de um dia extremamente tenso e agitado, possui também um valor metafórico: explicita a condição de um ser alienado, de um ser humano esvaziado de valor e significado, portanto destituído de sua própria humanidade.
O movimento cíclico de Naziazeno é uma condenação ditada por forças que escapam ao seu discernimento e às suas possibilidades de ação, resulta da intervenção na esfera do sujeito dos processos instaurados pelo sistema capitalista cujo dinamismo gera tanto o progresso quanto a barbárie, como já observaram Adorno e Horkheimer:
Assim como a substituibilidade é a medida da dominação e o mais poderoso é aquele que pode se fazer substituir na maioria das funções, assim também a substituibilidade é o veículo do progresso e, ao mesmo tempo, da regressão. Na situação dada, estar excluído do trabalho também significa mutilação, tanto para os desempregados, quanto para os que estão no polo social oposto (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 46).
Aquilo que os representantes da teoria crítica afirmam com referência aos desempregados pode servir também para a compreensão das ações dos personagens de Os ratos, mutilados por serem privados da posse de si mesmos, reduzidos a autômatos, seres inconscientes que sofrem os efeitos de uma engenharia social que conjuga com extrema naturalidade perversão e racionalidade. O périplo de Naziazeno reproduz as contradições de um modelo mais vasto:
Por outro lado, a adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso, mas exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 46).
A opressiva banalidade do cotidiano dos personagens de Os ratos e seus atos minúsculos e mesquinhos são produtos de uma razão que, prometendo a emancipação do homem, acaba por renovar as formas de escravização de boa parte da humanidade.
Conclusão
Em sua análise da obra de Charles Baudelaire, Walter Benjamin destaca o fato de o poeta viver fugindo dos credores, enfiando-se em cafés ou em círculos de leitura. A fuga consiste em abrigar-se na multidão: os cafés e os círculos são pausas no interior da massa urbana. O trajeto de Naziazeno assemelha-se ao percurso do poeta, à exceção da frequência aos espaços de arte e cultura. Talvez em nenhum outro romance brasileiro as personagens circulem tão intensamente pelos cafés.
A ambientação poderia, não obstante, assinalar uma coincidência ou tangência sem maiores implicações, caso não tivesse papel decisivo no desenrolar da narrativa: o de funcionar como quartel-general dos excluídos que traçam nos cafés as estratégias de sobrevivência. Não somente o espaço, mas também o caráter de cumplicidade meio clandestina da ação coletiva aproximam as personagens de Os ratos da figura do conspirador, valorizada por Benjamin como reveladora do processo de elaboração estética de Baudelaire e identificada por Marx como:
As condições de vida desta classe [os conspiradores] condicionam de antemão todo o seu caráter... Sua existência oscilante é, nos pormenores, mais dependente do acaso que da própria atividade, sua vida desregrada, cujas únicas estações fixas são as tavernas dos negociantes de vinho − os locais de conspiradores −, suas relações inevitáveis com toda a sorte de gente equívoca, colocam-nos naquela esfera de vida que, em Paris, é chamada de boêmia (apud BENJAMIN,1991b, pp. 9-10).
Só que na obra de Dyonélio Machado as tavernas são os cafés e a gente esquiva é toda a espécie de agiotas e indivíduos que ganha a vida à custa da miséria alheia. Apesar de também ser uma área de sombra e penumbra, não produz a boêmia ou qualquer outra prática social que usa o escuro apenas para realçar o brilho e o magnetismo de formas antípodas do trabalho alienado. O mundo de Naziazeno e seus parceiros é dotado de espessa opacidade, sem visibilidade, sem legibilidade, sem legitimidade. Na penumbra onde vivem passam o tempo todo tramando estratégias de sobrevivência à semelhança de pequenas conspirações do cotidiano.
Como conspirador cuja trama jamais alcança visibilidade, Naziazeno pode sentir prazer em andar pelas ruas porque "a massa desponta como o asilo que protege o anti-social contra os seus perseguidores". (1991b, p. 38) Posteriormente, ao analisar o surgimento do romance policial, Benjamin aponta para a supressão dos vestígios do indivíduo na multidão da cidade grande como elemento formador desse tipo de narrativa. Se Os ratos não pode ser considerado um texto policial, não deixa de alimentar-se de uma forte tensão psicológica criadora de uma espécie de suspense ─ afinal, na ótica dos detentores dos recursos financeiros, uma dívida é um delito imperdoável e a punição equivale àquela aplicada ao criminoso comum: ambas representam formas de exclusão social.
Se a ação pode ser comparada a uma conspiração, nela Naziazeno exerce um papel secundário; por outro lado, conferir à esperteza de Duque o comando das ações da narrativa é não atentar para o essencial: nada se resolve ao longo do romance; o pagamento da dívida não possui nenhum significado, a não ser o de apontar para uma rotina brutal; a vida dos personagens é constituída pela repetição de trágicos e patéticos malabarismos financeiros e sociais. Na verdade, a posição de Duque é ditada pelas circunstâncias e pela movimentação social instintiva do indivíduo no meio da espécie, resultante de um paradoxo já apontado por Benjamin:
(...) as pessoas só têm em mente o mais estreito interesse privado quando agem, mas ao mesmo tempo são determinadas mais que nunca em seu comportamento pelos instintos da massa. E mais que nunca os instintos de massa se tornaram desatinados e alheios à vida (BENJAMIN: 1991a, p. 21).
Os ratos pode ser lido como um relato sobre a forma moderna de solidão: aquela provocada pela multidão. Tal paradoxo, apontado por Benjamin, é nuclear ao romance moderno:
O romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém (BENJAMIN: 1985, p. 54).
Naziazeno ganha vida nas ruas, porém não é um flâneur: seu andar não ostenta, não almeja impressionar e desfrutar prestígio; ao contrário, mais se esconde do que se exibe, não toma as ruas de assalto, transformando-as em passarelas narcísicas. A galeria não é o seu templo e o café nunca funciona como ponto de afirmação social; não deseja despertar a atenção, já que transforma a invisibilidade em instrumento de defesa. Muito menos pode ser considerado um basbaque que dá total atenção à cidade, impressionado com sua força e modernidade, na contramão do gosto pela admiração do flâneur. Sequer pode ser considerado como um transeunte, um indivíduo a mais na multidão, pois ele é um a menos, cuja presença se dá sob forma fantasmagórica. Representa uma nova legião de criaturas urbanas, egressas das zonas de exclusão: os zumbis, os homens-invisíveis, os seres reduzidos à condição de autômatos.
Nota
1 Conforme o conceito de agregado formulado por Roberto Schwarz no ensaio “As ideias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas. 3a.ed. São Paulo: Duas Cidades,1988. "Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande." Mais adiante: "O agregado é a sua caricatura [do 'homem-livre']". Em Os ratos ocorre algo mais grave: Naziazeno depende de favores de indivíduos tão pequenos quanto ele.
Referências
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do
esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1985.
_____. Textos escolhidos. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1989.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1999.
BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da Cultura. In: Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo: Brasiliense,
1985.
_____. Rua de mão única. 2a. ed. In: Obras escolhidas. Vol. II. 2ed. São Paulo:
Brasiliense, 1991a.
_____. “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. In: Obras
escolhidas. Vol. III. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1991b.
DYONÉLIO, Machado. Os ratos. 9ed. São Paulo: Ática, 1984.
GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. 2ed. São Paulo: Alternativa, s/d.
REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
SCHARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 3ed. São Paulo: Duas
Cidades,1988.
* Trabalho publicado na Revista Travessias, n° 2 - mai-jun/2008 - UNIOESTE - Paraná, adaptado para este blog.

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