Pular para o conteúdo principal

O mistério da cripta assombrada, Eduardo Mendoza



 


Um detetive muito louco * 

   
* Resenha publicada no Jornal do Brasil em 10/11/2011


“O mistério da cripta assombrada”, de Eduardo Mendoza, é um romance extremamente divertido e saboroso que se lê de um fôlego só. Sucesso de público e de crítica, a obra, lançada em 1978, faz parte dos programas escolares espanhóis. Trata-se, na verdade, da primeira narrativa de uma trilogia da qual fazem parte dois livros ainda não lançados entre nós: “Laberinto de las aceitunas” e “La aventura del tocador de señoras”. Os outros livros do autor catalão já traduzidos entre nós são “A cidade dos prodígios” e “A assombrosa viagem de Pompônio Flato”.

O anônimo protagonista da narrativa é retirado de uma partida de futebol no manicômio onde fora internado e conduzido a uma reunião com um seleto grupo, formado pelo doutor Sugrañes, responsável por seu tratamento, pelo delegado Flores, que efetuara a sua prisão, e por uma freira do colégio das madres lazaristas de São Gervásio. 

A reunião serve como apresentação do problema a ser solucionado no decorrer da história: uma aluna desaparecera certa noite para reaparecer dois dias após sem que soubesse explicar aonde fora levada e como ocorrera o misterioso sumiço, repetindo um fenômeno ocorrido há seis anos. O delegado, ao final da exposição do caso, revela com crueza as razões da escolha de um suposto alienado para solucionar o caso: “Precisamos (...) de uma pessoa conhecedora dos ambientes menos gratos da nossa sociedade, cujo nome possa se sujar sem prejuízo de ninguém, capaz de realizar por nós o trabalho e da qual, chegada a hora, possamos nos desembaraçar sem estorvos”. Em troca da colaboração, promete a liberdade ao encarcerado. Promessa não cumprida ao final.

As razões que elevaram um louco anônimo às funções de investigador policial não escondem, no entanto, a falência do próprio delegado, impotente para solucionar os dois casos de desaparecimento. O detetive improvisado é uma paródia aos estereótipos detetivescos – dedutivos, cerebrais, psicológicos, violentos, inescrupulosos etc. Não se situa apenas fora do universo investigativo, muito mais do que isso: é um indivíduo invisível, recolhido à zona sombria dos párias sociais. Contra todas as expectativas possui, no entanto, consciência de sua singular sagacidade ao apresentar-se como “um louco, um malvado, um delinquente e uma pessoa de instrução e cultura deficientes, pois não tive outra escola senão a rua nem outro mestre senão as más companhias de que soube rodear-me, mas nunca tive, nem tenho nada de bobo:...”  

A ação se desenvolve em 1975 numa Barcelona renovada pelos ventos da mudança política representada pelo fim do franquismo, mas exibida em ângulos cinzas e negros. As andanças do louco investigador expõem os meandros do submundo barcelonense, levando-o a deparar-se com cadáveres, falsificar identidades, a provocar muita confusão até conseguir finalmente dar conta do caso diante da falência do sistema policial.

Um dos trunfos do livro se deve ao fato de o protagonista, que se confessa analfabeto e ex-delinquente, expressar-se com um refinamento digno de eruditos e de alterar seu discurso em relação às diferentes personalidades que falsifica, além de exibir rica sabedoria popular e precisa descrição dos meandros da cidade. O detetive de Mendonza age com o desembaraço daqueles que precisam de muito jogo de cintura para sobreviver, por isso é safo na ação e de lábia envolvente. Com um comportamento impulsivo, imprevisível e repleto de violações à lei, o louco detetive dá conta da tarefa proporcionando momentos hilários ao leitor.

O interno não é propriamente solto para executar a investigação, mas completamente abandonado: sem dinheiro, em trapos, sem lugar para residir, alimentar-se e cuidar da própria higiene. Vira-se como pode, come o que encontra, surrupia ou lhe fornecem. Recorre à irmã prostituta no bairro Chinês. Vive de golpes, surrupia revistas para ficar bem informado e furta objetos para manter-se.  É hilariante o modo como consegue embriagar e enrolar o jardineiro do colégio das freiras para obter informações. O leitor seguramente há de admirar a argúcia e o engenho transgressor desse detetive pícaro.

A narrativa leve e bem divertida consegue notável equilíbrio na  múltipla articulação em que é constituída. Temos, assim, um romance policial que se alimenta da forma do romance negro, carregado de humor ácido, corrosivo e muito singular; do esperpento, estilo desenvolvido por Roman Valle-Inclán e marcado pela deformação grotesca da realidade destinada à produção de uma crítica à sociedade; do modelo de humor cervantino; e do romance picaresco, de rica tradição na literatura espanhola. Assim, o romance quebra o predomínio da sisudez, da tensão psicológica contínua, do exercício puramente cerebral e da violência, sem deixar de recorrer a todos os recursos típicos do gênero policial.

Valendo dessa estrutura híbrida, de ritmo ágil e repleta de peripécias, Mendoza realizou uma farsa burlesca e uma sátira social em que critica os ricaços de Barcelona, a Igreja e os políticos de uma época muito concreta da história espanhola: a transição para a democracia. 

 Desse amálgama resulta o surgimento de um anti-herói, um detetive incomum, próximo à figura do malandro, nosso velho conhecido. Mas com uma linguagem curiosamente exagerada e alambicada, uma paródia extemporânea à fala dos círculos cultos barcelonenses. 


No prefácio do livro, Mendoza revela influência de Ross McDonald e esclarece que escreveu tudo no prazo de uma semana como uma forma de superar a síndrome do segundo romance, enquanto sedimentava a criação daquele que ainda é o seu melhor trabalho – “A cidade dos prodígios”. Talvez isso explique a leveza, a coesão, o humor e o acerto de “O mistério da cripta amaldiçoada”, que peca apenas por uma descida de tom na conclusão das aventuras do louco investigador. Se parece ter faltado uma lapidação mais acurada ao final, a leitura do livro vale pela qualidade e pelo inusitado do texto, além das risadas que arranca do leitor.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Contos d’escárnio. Textos grotescos, Hilda Hilst

Hilst: exílio da oikos * Contos d’escárnio. Textos grotescos  é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos , de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme . As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem cé...

Os moedeiros falsos, André Gide

                                        A escrita em abismo de André Gide * * Resenha publicada no Caderno  Ideias & Livros , do Jornal do Brasil, em 30/01/2010 O relançamento de  Os moedeiros falsos , de André Gide (1869-1951) vem preencher um vazio de quase duas décadas de ausência dos livros do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1947 entre nós. Juntamente com o texto assumido pelo próprio autor como seu único romance, a editora Estação Liberdade lançou o  Diário dos Moedeiros   Falsos , até então inédito no Brasil. Parece haver uma renovação do interesse pela obra do autor de  A Sinfonia Pastoral . A mesma editora publicou uma nova tradução de  Os  Subterrâneos do Vaticano , além de promover a primeira edição do conto  Pombo-torcaz , escrito em 1907, porém só publicado em 2002. Na França, no ano passado, a coleçã...

Galáxias, Haroldo de Campos

Galáxias ; uma escrita babelbarroca *  1. Introdução João Alexandre Barbosa, ao discorrer sobre o poema moderno, observou que este apresenta dois níveis de leitura: “aquele que aponta para uma nomeação da realidade em seus limites de intangibilidade, operando por refrações múltiplas de significado, e aquele que, ultrapassando tais limites, refaz o périplo da própria nomeação, obrigando a linguagem a exibir as marcas de sua trajetória”. [1] Evidentemente, a segunda hipótese ajusta-se à estrutura de Galáxias, de Haroldo de Campos, objeto de nossa investigação, cuja construção/desconstrução revela o tempo como o único traçado visível, fio condutor da viagem cuja existência deve-se, no entanto, à fala que o diz. A linguagem molda um balé de saltos e rupturas, orquestrando as mil vozes do discurso numa polifonia de estilhaçamento de vida e linguagem, mergulho radicaos instaurado por uma poiésis lábil em incessante irrupção de significantes. A prosa haroldiana, pulveriza...