Pular para o conteúdo principal

O cemitério de Praga, Umberto Eco

Umberto Eco drinking coffee in NYC




Acompanho a obra multifacetada de Umberto Eco desde 1974, quando li Obra aberta. Posteriormente, também fui seduzido pelas grandes narrativas que nos legou. Reproduzo aqui resenha publicada no blog Caosgraphia sobre o romance O cemitério de Praga. Pequena mas sincera homenagem a este autor que marcou minha trajetória.


Teorias da conspiração


           José Antônio Cavalcanti


Umberto Eco, especialista em semiótica, medievalista e pensador italiano, é um autor que se aventurou um pouco tarde, em 1981, no terreno da ficção, quando já possuía uma obra acadêmica reconhecida internacionalmente. Sua estreia obteve êxito surpreendente, pois o extenso romance O nome da rosa, transplantado para as telas também com grande sucesso, inseria em suas páginas uma erudita exposição de teorias sustentadas por filósofos e religiosos durante a Idade Média. Guilherme de Baskerville, franciscano, discípulo de Roger Bacon, e seu aprendiz, Adso de Melk, investigam uma série de mortes misteriosas ocorridas em um convento nos Alpes, todas motivadas por disputas em torno do livro perdido de Aristóteles sobre a comédia. Por trás da trama policial, encontra-se, contudo, uma análise penetrante de concepções teológicas e filosóficas vigentes na era medieval.

Trinta anos depois, o autor nos oferece uma nova fronteira, dessa vez ambígua e pantanosa, entre ficção e história. Se esta depende fundamentalmente de documentos, carente dos privilégios próprios à ficção (o de constituir-se com o fio da imaginação), aquela não deve ser vista como o texto suplementar destinado a preencher falhas e lacunas históricas ou um espaço aberto a múltiplas interpretações dos acontecimentos de cada época. A extensa pesquisa realizada pelo autor, uma vez incorporada à obra, apaga o factual ao ficcionalizá-lo. E aquilo que há alguns pode soar como excessivo transforma-se em combustível para sustentar o ritmo dinâmico de um texto com fôlego de um thriller escrito sob a forma de diário, cujo enredo combina vasta erudição, jogo metaficcional e boa  dose de humor. 

Se o artista é simulador de realidades, um fingidor, como observou Pessoa, o que, então, representa a figura de quem falsifica acontecimentos como se fossem textos de ficção? Qual é a estética diabólica do laborioso artesão de conflitos e preconceitos? É sobre o ator cuja representação não simboliza nenhum real, porém é capaz de transformar esse nada em história que Eco constrói o tema de seu novo romance. A escrita aparece como sinônimo de adulteração quando a serviço da legitimação do poder. A reprodução folhetinesca do século XIX, com uso de gravuras da época, guarda, sob aparente anacronia, as verdades rasuradas expostas ao longo da aventura humana: o Plano Cohen, a atribuição aos cristãos de uma Roma em chamas, as armas químicas de Sadam Hussein, as supressões políticas em fotos da era Stálin, a suposta culpa de todos os presos de Guantánamo, o judeu como causa da decadência alemã, a associação entre o Islã e o terrorismo. Com quantos documentos falsificados se fez/faz a História? Provavelmente nunca obteremos respostas, mas sabemos que toda a história de Simone de Simonini é um fraudulento exercício de intervenção na sociedade realizado a soldo de instituições e governos empenhados em controle absoluto. Há algo mais atual do que isso? Só o fato de apontar para interferências clandestinas e silenciosas no destino de todos já justifica uma leitura de O cemitério de Praga capaz de avançar além do caráter de puro entretenimento que a obra também abriga.

Como esclarece o autor em nota ao final do texto, o protagonista é a única personagem inventada, todas as outras existiram realmente, e fizeram e disseram aquilo que aparece no romance. Na mesma nota, Eco fornece um quadro destinado a facilitar a localização histórica das ações incorporadas à narrativa, dotada de caráter não linear, com o recurso a flashbacks.

O romance é narrado por uma personagem que padece de dupla personalidade: ora escreve no diário como Simone de Simonini, falsificador de documentos, ora se assina como abade Dalla Piccola. O sacerdote intruso serve para preencher as lacunas do falsário: “É que o abade Dalla Piccola parece despertar somente quando Simonini precisa de uma voz da consciência que acuse suas divagações e o chame à realidade dos fatos, e, em seguida, mostra-se sobretudo imêmore de si”.

O antissemitismo alcançou o protagonista no berço: o nome é uma referência ao Pequeno São Simão, um menino mártir raptado e morto por judeus, além disso o avô deixou-lhe alguns textos que, trabalhados e retrabalhados, irão contribuir para a origem da montagem conhecida como os Protocolos dos sábios de Sião. Essa é, na verdade, a falsificação-maior, o núcleo da trama. Trata-se da produção de uma espécie de ata de uma reunião de sábios judeus, vindos de várias partes da Europa, supostamente ocorrida no antigo Cemitério de Praga. Nela teria sido revelado um plano judaico para domínio do mundo e extermínio do cristianismo. Trabalho feito a várias mãos, mas cuja lapidação final caberia ao capitão Simonini, hábil tabelião-falsário.

As ações, envolvendo serviços secretos, espiões de vários países, as lutas de Garibaldi, o caso Dreyfus, a Comuna de Paris, jesuítas, maçons, sacerdotes sem ética, intrigas e dissimulações, ocorrem na segunda metade do século XIX, em Turim e Palermo, na Itália, e em Paris, na França. No início do livro, observa-se um caráter cômico, com uma crítica generalizada à cultura europeia. Alemães, judeus, franceses, italianos, padres, maçons, jesuítas, comunistas e mulheres são retratados sob uma ótica negativa, praticamente ninguém escapa à misantropia do capitão Simonini. Depois a história vai adquirindo contornos mais sombrios, com a eclosão de conspirações de toda ordem, explosões, atentados, mortes, massacres, missas negras e diversos atos condenáveis, próximos ao que hoje denominamos terrorismo.

Em uma época em que circulam inúmeras teorias de conspiração, não faltará um amplo público ao romance. Há que se ler O cemitério de Praga, no entanto, como uma falsificação que expõe, pelo avesso, o mecanismo constitutivo da intolerância, o preconceito, a perversão da escrita destinada a promover o apagamento do outro. Não é à toa que o narrador afirma: “É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza de sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial. O amor, sim, é uma situação anômala. Por isso, Cristo foi morto: falava contra a natureza. Não se ama alguém por toda a vida; dessa esperança impossível nascem adultérios, matricídios, traições dos amigos... Ao contrário, porém, pode-se odiar alguém por toda a vida. Desde que esse alguém esteja sempre ali, para reacender nosso ódio. O ódio aquece o coração".

  

Autor: ECO, Umberto  
Tradutor: MELO, Joana Angélica D'Avila
Editora:  Record
Ano: 2011

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Contos d’escárnio. Textos grotescos, Hilda Hilst

Hilst: exílio da oikos * Contos d’escárnio. Textos grotescos  é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos , de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme . As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem cé...

Os moedeiros falsos, André Gide

                                        A escrita em abismo de André Gide * * Resenha publicada no Caderno  Ideias & Livros , do Jornal do Brasil, em 30/01/2010 O relançamento de  Os moedeiros falsos , de André Gide (1869-1951) vem preencher um vazio de quase duas décadas de ausência dos livros do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1947 entre nós. Juntamente com o texto assumido pelo próprio autor como seu único romance, a editora Estação Liberdade lançou o  Diário dos Moedeiros   Falsos , até então inédito no Brasil. Parece haver uma renovação do interesse pela obra do autor de  A Sinfonia Pastoral . A mesma editora publicou uma nova tradução de  Os  Subterrâneos do Vaticano , além de promover a primeira edição do conto  Pombo-torcaz , escrito em 1907, porém só publicado em 2002. Na França, no ano passado, a coleçã...

Galáxias, Haroldo de Campos

Galáxias ; uma escrita babelbarroca *  1. Introdução João Alexandre Barbosa, ao discorrer sobre o poema moderno, observou que este apresenta dois níveis de leitura: “aquele que aponta para uma nomeação da realidade em seus limites de intangibilidade, operando por refrações múltiplas de significado, e aquele que, ultrapassando tais limites, refaz o périplo da própria nomeação, obrigando a linguagem a exibir as marcas de sua trajetória”. [1] Evidentemente, a segunda hipótese ajusta-se à estrutura de Galáxias, de Haroldo de Campos, objeto de nossa investigação, cuja construção/desconstrução revela o tempo como o único traçado visível, fio condutor da viagem cuja existência deve-se, no entanto, à fala que o diz. A linguagem molda um balé de saltos e rupturas, orquestrando as mil vozes do discurso numa polifonia de estilhaçamento de vida e linguagem, mergulho radicaos instaurado por uma poiésis lábil em incessante irrupção de significantes. A prosa haroldiana, pulveriza...