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Jakob von Gunten, de Robert Walser





Escola de Desaparecimento * 

* Resenha sobre Jakob von Gunten, de Robert Walser, publicada no Jornal do Brasil, em 25/07/2011. 

Aos poucos a obra de Robert Walser (1878-1956), escritor suíço de língua alemã, vem sendo divulgada no Brasil. Depois de O ajudante, lançado pela Arx, em 2003, a Companhia das Letras nos traz, na tradução de Sergio Tellaroli,  Jakob Von Gunten, a obra-prima do autor, publicada originalmente em 1909. 

Mantido à margem durante décadas, Walser conseguiu conquistar o apreço de grandes autores, como Kafka, Hermann Hesse, Musil, Canetti, W.G. Sebald, Coetzee, Benjamin e Vila-Matas, o último dos quais se inspirou na trajetória walseriana ao criar  Doutor Pasavento, romance que despertou o interesse do leitor brasileiro pelo autor de Irmãos Tanner. 

Walser levou uma vida errante, entre a Suíça natal e Berlim, sempre no exercício de funções modestas. Frequentou uma escola para criados, ofício que chegou exercer em um castelo, experiência aproveitada em seus textos. Trabalhou em banco, foi auxiliar de escritório, fracassou na carreira de ator, mas deixou um legado literário cada vez mais valorizado. 

Loucura e tragédia formaram uma atmosfera familiar ao autor: a mãe e um irmão suicidaram-se, outro irmão, vítima de distúrbios psicológicos, morreu internado em uma clínica. Walser, que também tentou o suicídio, sofria de insônia, ouvia vozes, era acometido de frequentes ataques nervosos e tornava-se agressivo quando bebia. Depois de uma crise mais intensa, foi internado num hospício. Seus últimos 27 anos transcorreram no isolamento de clínicas especializadas, até ser encontrado morto no natal de 1956, após um dos seus longos passeios pelas cercanias do sanatório de Herisau. Morte similar à de uma de suas personagens em Irmãos Tanner.

A partir de 1924, passou a adotar um processo que denominou o “método do lápis”: produz seus textos apenas a lápis sobre diversos tipos de suporte – envelopes, papel de embrulho, folhas de calendário, cartões de visita etc. -, valendo-se de uma caligrafia microscópica, baseada em formas abreviadas de antiga escrita alemã, com a qual fazia a escrita transbordar os limites do espaço,  num experimentalismo próximo a Joyce. Esses textos, conhecidos como microgramas,  só foram decifrados em 1972, data a partir da qual se deu a redescoberta de sua obra, como o último romance, Os salteadores, escrito entre 1925-1926. 

Em 1929 abandonou de vez a literatura. Provocado por um admirador sobre a possibilidade de voltar à criação, saiu-se com uma frase surpreendente: “Estou aqui para enlouquecer, não para escrever”. Apesar de plenamente recuperado, recusou-se a sair de Herisau.

Jakob von Gunten é um diário sem datação, estratégia narrativa capaz de sustentar a junção de fragmentos nos quais, mais do que uma história propriamente, se esboça um trajeto assinalado pela dispersão e pela exaltação da insignificância.

O protagonista matricula-se no Instituto Benjamenta com a finalidade de aprender a servir. Convive com rapazes da mesma idade, todos submetidos a uma educação que reduz as aspirações de ascensão social a algo próximo à invisibilidade. A atração pelo mínimo aparece logo no início da narrativa: “Aqui se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada, ou seja, seremos, todos, coisa muito pequena e secundária em nossa vida futura. As aulas a que assistimos visam sobretudo a inculcar-nos paciência e obediência, duas qualidades que ensejam pouco ou mesmo nenhum sucesso”.

No Instituto todos recebem uma única aula – sobre como um rapaz deve se comportar –  e leem o livro O que pretende a Escola Benjamenta para rapazes.
A história de Walser subverte o bildungsroman, forma típica da literatura alemã, na qual é ficcionalizado um processo de formação ao término do qual as personagens ganham peso, volume, consistência. Jakob von Gunten constrói-se como esvaziamento irônico da crença em amadurecimento.

O conhecimento da experiência humana como potência máxima da negatividade une o início e o fim da permanência do jovem Jakob no Instituto. “De uma coisa tenho certeza: no futuro, o que vou ser é um zero à esquerda, muito redondo e encantador”, revela o protagonista no primeiro dia. Constatação repetida no último parágrafo do livro: “E, se eu me arrebentar e me arruinar, o que arrebentará e arruinará? Um zero à esquerda. Eu, indivíduo isolado, sou um zero à esquerda”. Difícil não confundir os trajetos do personagem-narrador e do autor. Difícil também  não pensar no fracasso beckettiano.

As conversas de Jakob com a única professora, Lisa Benjamenta, irmã do diretor do Instituto, são marcadas pela ambiguidade: respeito, obediência, veneração e desejo erótico parecem habitar o coração e a mente do jovem de modo confuso. Um erotismo latente também se instala em suas relações com Kraus, o aluno-padrão do servilismo.

O ambiente do Instituto e os próprios Benjamenta são descritos inicialmente em tom misterioso. Jakob justifica a falta de professores afirmando que estão mortos ou dormem. No entanto, mais adiante, em outra anotação, o narrador mistura seus antigos professores aos do Instituto, valendo-se de um clima onírico e de confusão mnemônica para intensificar a ambiguidade e deixar o sentido em aberto. 

A varinha branca usada pela professora na sala de aula e a revelação de um misterioso espaço no interior do estabelecimento reforçam a aura mágica de Lisa, numa referência às narrativas dos contos de fada. Apesar da viagem onírica, guiada pela mestra, aos “aposentos interiores”, Jakob posteriormente constata que os cômodos onde vivem os Benjamenta são desprovidos de qualquer mistério. A descrição fantasiosa, os paradoxos, o labirinto destinado à perda do indivíduo, no entanto,  explicam porque Musil colocou Kafka na linhagem de Walser.

Ambígua também é a tensa relação entre o Sr. Benjamenta e Jakob. Da descrição daquele como um gigante um tanto rabugento no início, comparado a pupilos vistos como pigmeus, até ao final, em que o gigante torna-se súplice e fica nas mãos de Jakob, há um trabalho de demolição do mito de grandeza, de domínio e de hierarquia. 


O percurso de Walser é o caminho do desaparecimento, uma experiência radical de esteticização negativa da própria existência, luz lançada em páginas marcadas por um estranhamento que desemboca em um silêncio assustador. Walser parece tê-las escrito com os passos erráticos e travessos de suas caminhadas nas quais vislumbrou algo capaz de magnetizar o leitor com a familiaridade de sua estranheza.

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