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"Fluxo", Hilda Hilst


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O lugar hilstiano*

       
    Hilda Hilst é uma autora sobre a qual a ação do tempo desperta uma crescente ampliação do interesse acadêmico. Essa afirmativa pode ser facilmente comprovada pelas inúmeras teses e dissertações a respeito de sua multifacetada produção: dramática, poética e narrativa. O aumento de pesquisas sobre a sua obra, no entanto, ainda não foi suficientemente forte para gerar uma bibliografia crítica capaz de nos aproximar de sua riqueza.
    O presente trabalho investiga de que modo na narrativa de Hilst, lida com frequência sob a ótica do erótico, do filosófico, do hermético e do poético, podem ser percebidas marcas reconhecidas pela ecocrítica. Tal tarefa, à primeira vista,  parece extremamente ingrata, pois a prosa hilstiana subverte linguagens, escandaliza comportamentos, desarma apreensões críticas, violenta demarcações genéricas, parte sempre de um pensamento que capta a ausência, o nada e constrói-se sob o vazio; dele faz sua morada e dele, somente dele, do não lugar da arte, pode pro-duzir (HEIDEGGER: 2001, 16).  [1]
     Uma leitura mais atenta, no entanto, conseguirá encontrar em seus textos  caminhos relacionados ao pensamento ecológico capazes de iluminar novas perspectivas  trazidas  pela narrativa brasileira contemporânea.
    Contemporaneidade aqui é empregada na acepção da discronia agambeniana: “é aquela relação com o tempo que adere a este através de uma defasagem e de um anacronismo (AGAMBEN, 2009, 1-2). Isto é, a apreensão do próprio tempo só é possível através de um desvio, de um distanciamento. Aqueles que se conformam totalmente às ideias e aos ideais de uma época são incapazes de captá-la com nitidez. Por isso só é contemporâneo efetivamente quem percebe a obscuridade de seu próprio tempo.
    Além de chamar a atenção para a discronia e a obscuridade, Giorgio Agamben também circunscreve os índices e as marcas do arcaico na esfera do contemporâneo ao observar a sobrevivência da origem no processo do devir histórico.
    Essas características, presentes na obra hilstiana, marcam uma escrita que guarda as questões inaugurais e eternas do ser humano, dimensão ontológica arquitetada em uma linguagem experimental em que a modernidade não expulsa nem sacraliza o passado. Nela o distanciamento e a singularidade da autora constroem a possibilidade de uma compreensão mais precisa de sua temporalidade, fato impensável se a sua visão fosse de pura aderência à época em que viveu. Sua produção flagra a matéria negra do tempo, razão pela qual surge o hiato, o deslocamento, a cesura, a dificuldade de inseri-la em um espaço cômodo, em um rótulo identitário que suprimisse a inquietação promovida por sua leitura. 
    A violenta tensão da narrativa hilstiana resulta do deslocamento do ser, exilado das verdades universais, das certezas inquestionáveis, do centro, da origem e da promessa de eternidade. Solto em um mundo desordenado, o artista cria uma escrita que só pode reproduzir a fragmentação da existência, o seu caráter caótico. Todos os recursos empregados, contudo, revelam a sobrevivência extraordinária das perguntas essenciais. Os fragmentos, as ruínas com os quais se escreve o caráter experimental da narrativa, exasperam o estado agônico de quem  só encontra o nada como o eco da busca e intensificam a violência das ondas em que se transforma o incessante movimento de lançar as questões fundamentais da existência com renovado vigor.
    Uma leitura da obra hilstiana sob os olhos da ecocrítica exige uma compreensão mais refinada da ecologia, capaz de ultrapassar as simples referências ambientais e apreender o significado mais profundo desse campo de conhecimento “que não é, primordialmente, um problema econômico e político, mas, sim, um problema de relação do homem consigo mesmo, com os outros e com as coisas” (CASTRO: 1992, 13). Essa densa e extensa rede de relações que encobrem a existência humana é exposta por Hilda Hilst em estado agônico, em crise, numa exibição nua e crua da falência de um tempo e modo de organização da humanidade, espelhados no caos de gêneros com o qual seus livros são  arquitetados, na rarefação de personagens da narrativa, no colapso de hierarquias e identidades.
     A etimologia da palavra ecologia lança luzes sobre à compreensão de seu significado e auxilia a perceber como Hilda Hilst contribuiu para revelar áreas menos visíveis da questão ecológica. Manuel Antônio de Castro relatou o processo de formação da palavra:

Ecologia se constitui de dois termos gregos. 1º. Oikos, significa:; habitação, família, raça; este, em grego, se forma do  verbo; oikizein,que significa: instalar, construir, fundar. 2º. Logia, que se formou do verbo leguein: dizer, anunciar, ler, ordenar. A este verbo se prende também a palavra logos (daí logia), que significa: palavra, razão, discurso. Percorrendo e confrontando os diferentes significados possíveis dos dois termos gregos, notamos que em nenhum momento aparece a palavra natureza. Muito pelo contrário, se há um significado central no termo ecologia, este é HABITAÇÃO.(CASTRO: 1992, 14)


     Na narrativa hilstiana podemos observar a presença em todas as narrativas, de uma forma ou de outra, da existência de seres desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.
 Fluxo-floema, publicado em 1970, é a primeira incursão de Hilda Hilst à narrativa em prosa. Constitui-se de um conjunto de quatro textos, dos quais apenas o primeiro, denominado “Fluxo”, será abordado. Nele já é possível encontrar as formas matriciais de universo hilstiano: a produção textual reflexiva, capaz de conjugar ficção e pensamento, ou seja, poiesis e filosofia; uma narrativa em que “todos os gêneros se fundem”, conforme observação de Anatol Rosenfeld no prefácio da primeira edição; a proliferação de máscaras; a presença de um vocabulário rebuscado ao lado de intensa oralidade;  a indagação existencial; o não lugar da arte; o uso de jogos metaficcionais e metalinguísticos.
         O título – Fluxo – significa escoamento ou movimento contínuo de algo que segue um curso, uma corrente que jorra livremente, incorporando o puro e o impuro, o sagrado e o profano, dissolvendo fronteiras genéricas e tipologias textuais, misturando a linguagem alta à baixa, ao mesmo passo em que se angustia com o caráter incognoscível de origens e destino.
    O recurso ao fluxo de consciência  permite relacionar a alta voltagem do texto hilstiano, ainda que sujeita a curto-circuitos, às ideias desenvolvidas por William Rueckert, em um dos textos seminais da Ecoliteratura, “Literatura e Ecologia – um experimento em Ecocrítica”, de 1978. Neste ensaio, o autor sustenta que um poema pode ser considerado como uma forma de energia armazenada, renovável, originária da linguagem e da imaginação.  A leitura resulta, portanto, em um processo de transferência de energia.
    A utilização do fluxo de consciência por Hilda Hilst opera um desvio em relação ao seu uso convencional, como expôs o crítico Alcir Pécora:   
                 
Não se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual a narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos do narrador. O fluxo surpreendentemente  dialógico, ou mesmo teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente como falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração.

    Tudo indica que a produção teatral da autora, constituída por oito peças escritas entre 1967 e 1969, não cessou propriamente, antes encontrou na prosa  ficcional um território capaz de expandir o jogo de máscaras iniciado em suas peças. A dramaticidade do fluxo de consciência no texto aqui analisado pode ser observada  na substituição das personagens tradicionais da narrativa por máscaras ficcionais – Ruiska, o pai (desdobrado em anão); Ruisis, a mãe; Rukah, o filho. Surgem, assim, múltiplas vozes textuais a travar um diálogo de encontros e rupturas  com três criaturas que emanam do próprio narrador num jogo metaficcional, como pode ser constatado em fala de Ruiska dirigida ao anão:
                       
O meu de dentro é turvo, o meu de dentro quer se contar inteiro, quer dizer que Ruisis, Ruiska, Rukah, são três coisas que se juntaram aqui com um propósito definido, elas caminham para algum lugar, elas serão alguém, elas não podem estar aqui por nada, nem eu as colocaria aqui por nada, entende, anão? (HILST: 1970, 36)

    O texto apresenta em seu início uma fábula, cuja dimensão metafórica pode lançar luz sobre o caminho intentado pela autora.

Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu o crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre  à  procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado. Oi ai. Não há salvação. (HILST, 1970, p. 23)

    A moral negativa da história não impede que o artista – o menininho – movimente-se tocado pelo encantamento promovido pela frágil natureza do belo – o crisântemo – ainda que a busca seja também um desvio para a morte – o bicho medonho. O artista não pode fugir ao risco de ser devorado, deve se entregar sem espera de salvação em uma estranha forma ritualística de sacrifício, celebrada em um lugar perigoso e incomum, no qual executa a constante exposição de seus arcanos e de suas vísceras. Na fábula, o menininho move-se em direção ao outro; tal movimento corresponde ao gesto criador com o qual o artista tenta escapar à morte.
    Ruiska é um escritor às voltas com o seu processo criador, sobre o qual a ação demoníaca do mercado (o editor de livros ou o bicho medonho da fábula) exerce uma ação nefasta, pois sua arte não atende às expectativas de consumo: “eu só sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentro são complicadíssimas mas são...  são as coisas de dentro. E aí vem o cornudo e diz: como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada, você agora vai ficar riquinho e obedecer, não invente problemas”. (HILT: 1970, 24) A ação corrosiva do bicho medonho sobre o trabalho do escritor é recorrente ao longo do texto: “acaba com a coisa de escrever coisa que ninguém entende, que só você é que entende, é por causa dessas coisas que você tem agora uma úlcera na córnea.” (31); “É para teu bem que te pedimos novelinhas amenas, novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião, no módulo, na cápsula.” (31)
    O desconforto de Ruiska é ampliado por não ver o seu trabalho reconhecido por aqueles que lutavam pela transformação da sociedade. Também inconformados e deslocados em uma realidade opressora e alienante, poderiam vir a ser os leitores potenciais de uma estética transgressora. Isso não acontece. Ao revelar sua condição de escritor a membros de uma passeata, acaba acusado de alienação ao confessar que “escrevia (...) sobre essa angústia de dentro.” (HILST, 1970, 55) De nada vale argumentar sobre o caráter universal de suas preocupações, prevalecem o pragmatismo político, o imediatismo, o mesmo rebaixamento estético exigido pelo “bicho medonho”, ou seja, pelo mercado.
    Ruiska vive em um escritório, no qual se distinguem uma porta de aço, com a qual se isola do mundo, uma claraboia e um poço, os dois últimos posicionados em um mesmo eixo, dimensão topográfica que o obriga a um posicionamento no qual se vê impedido de ocupar o centro. Marca, na topografia existencial, a insuficiência do olhar, a perspectiva precária de uma curiosidade que se lança a todos os níveis do conhecimento.
    Quando tenta ultrapassar as fronteiras desse espaço criador, Ruiska sofre os efeitos  paralisantes do cotidiano: “todas as vezes que saio do meu escritório, todas vezes que é preciso abrir a porta de aço, todas as vezes que é preciso fechar a claraboia e colocar a tampa no poço por bondade, atravessar o meu pátio para conversar com quem quer que seja, eu fico rouco”. (HILST, 1970, 31)
    Cresce, dessa maneira, a dimensão metafórica do texto. A claraboia é o espaço por onde entra a luz, o lugar para onde se eleva o ser, o alto, a abertura para a dimensão cósmica. Contrapõe-se ao poço, aos instintos, ao inconsciente. Opõe-se o mundo solar ao mundo lunar.
     A simbologia antitética das metáforas espaciais traduz a natureza das preocupações hilstianas, alimentadas por uma incessante tensão entre o sublime e o chulo, a indagação metafísica e a carnalidade exasperante, a luz e a escuridão.
    A oposição, contudo, ganha novo contorno ao ampliar-se ainda mais a dimensão metafórica de Fluxo, pois nele poço “considerado de baixo para cima, é uma luneta astronômica gigante, apontada desde o fundo das entranhas da terra para o polo celeste. Esse complexo constitui uma escada da salvação ligando entre si os três andares do mundo [céu, terra, infernos]”. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009, 726)
     A figura do anão surgiu misteriosamente quando Ruiska investigava com seu telescópio uma estrela anã branca. É uma criatura originada “do intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da luta.” È o polo oposto de Ruiska, razão pela qual, após o acréscimo de um rabo, pode descer ao poço e viajar pelos subterrâneos, enquanto Ruiska, provido de asas, voa no lado luminoso, estelar, simbolizado pela claraboia.
    Ambos, contudo, são planos ficcionais de um mesmo ser. É o que fica claro na afirmação de Ruiska sobre o anão: “e esse aqui sou eu mesmo mas do cone sombrio.” (HILST: 1970, 55)  Perspectiva também assumida pelo anão : “Pois é claro, Ruiska, sou tua sombra, tudo que vem de baixo em ti, é coisa minha, e és tu também inteiro.” (HILST, 1970, 58). O anão é a consciência de Ruiska.
    As máscaras hilstianas traduzem a complexa indeterminação de territórios existenciais marcados, pois neles “as coisas de fora e as coisas de dentro ficam transitáveis” (HILST, 1970, 36). O lugar é sempre forma impura, não há espaços nobres ou sujos, amenos ou infernais, entradas ou saídas.
     Colocados em um mesmo ambiente, representam a impossibilidade de construções de muros ao redor da existência, a insuficiência de fronteiras, a ineficácia de demarcações territoriais, pois o humano é a mistura, o conflito, a coexistência de múltiplas criaturas em um único ser, uma pluralidade irredutível a categorização, a vida é um exercício desordenado, caótico, no qual mergulhamos sem nenhuma segurança.
            
Nota

 [1] No sentido atribuído a esse termo por Platão: “Todo deixar-viger o que passa e procede do não vigente para a vigência é ποίησις, é pro-dução”. 


Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? Trad. Cláudio Oliveira. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2009.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Ecologia: A Cultura como Habitação”. In: Ecologia e Literatura. Org. Angélica Soares. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 23ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 2ª. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Perspectiva, 1970.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
PÉCORA,  Alcir. Hilda  Hilst:  call  for  papers.  Disponível   em  http : //  www.
germinaliteratura.com.br/enc_ago5.htm. Acesso em: 26 fev. 2007,22:08.   
RUECKERT, Willian.  Literature   and  ecology:  an  experiment   in  Ecocriticism.   In: GLOTFELTY, Cherryl  &  FROMM,  Harold; eds. The  ecocriticism  reader   – landmarks  in  literary  ecology. Athens / London. The Univ.  of  Geórgia  Press, 1996. p. 105-23.


* Artigo publicado na Revista Garrafa, nº 18, abr./jun. - 2009, programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ


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