Vozes
textuais em Estar sendo. Ter sido *
Estar
sendo. Ter sido, livro publicado em 1997, pode ser entendido
como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de
referências; uma espécie de narrativa caótica se confrontado com o padrão
tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikós, de uma voz que vem de fora da
casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança,
portanto não há roteiro. As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema
extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade,
movem-se no lixo, nas sobras, nos dejetos do existir. Foram desalojadas do real
por excesso de realidade, excluídas não por carência, mas por abundância
(Baudrillard: 2001). A proliferação desenfreada do real anula a realidade e
deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser
humano sem chão e sem céu, do mal-estar da existência, da privação, cujo maior
símbolo é a presença de um deus ausente.
A expulsão em direção ao vazio, ao nada, provoca o surgimento de uma linguagem dotada de violência inigualável, proporcionalmente alimentada pela intensidade da ausência de respostas e instauradora de um texto construído com o alfabeto da transgressão, à semelhança de um verdadeiro terremoto linguístico.
Vera Queiroz, uma de suas mais capacitadas leitoras, soube sintetizar com muita propriedade os traços da narrativa de Hilda Hilst:
A transgressão de que
se reveste o discurso literário de HH pertence a uma natureza cuja matéria é a
opacidade, cuja forma é a repulsão e cuja metáfora pode ser a de uma dura pedra
− o diamante, por exemplo. Ela se constitui, primeiro, numa transgressão da
ordem temática, na medida em que a pudicícia no tratamento do tema amoroso, da
sexualidade ou do erotismo está longe de habitar seus textos. [...] O amor é
flagrado, sobretudo em seus vários estados de decomposição, arrastando consigo
uma linguagem ao mesmo tempo sublime e chula, com altos voos líricos e
vocábulos de baixo calão. Isso se dá em razão de que as tramas hilstianas
organizam-se em torno de estados agônicos de ser dos personagens, mobilizados
por situações apresentadas já em seu clímax, de modo que o leitor é convocado
desde o início a partilhar sem escolha, da vertiginosa voragem de questões
postas em geral ao ser catalisador dos abismos − Deus, cujos nomes desdobram-se
em dezenas de outros, por processos também eles múltiplos − metáforas,
metonímias e perífrases configuram aqui estratégias de cerco ao nome e à coisa,
e também ao leitor, por elas capturado. Nesse sentido, a literatura de Hilst
vige à beira de, é projetada no leitor em um estado de sítio constante, em
função das excruciantes demandas pelo inominável – o sentido da vida, as formas
do amor, a fatalidade do tempo. Tais os grandes enigmas e os abismos
metafísicos que engendram os personagens dessa obra única, e que os obsedam.
(2000: 19-20)
As características até aqui apontadas, no entanto, só podem ser melhor aferidas através da observação da pluralidade de vozes que formam aquilo que a própria autora, ao referir-se à sua obra, denominou umasómúltiplamatéria (Hilst: 1997, p. 72).
A voz babélica
Estar sendo. Ter sido começa com uma estrutura dialógica da qual participam Vittorio, o narrador, e Júnior, seu filho. Esta sequência narrativa é pontuada por uma constelação de memórias, devaneios, visões e referências a Deus, que apartam inúmeras vezes Vittorio dos diálogos, imergindo-o, mediante o processo do fluxo de consciência, em um cerrado subjetivismo.
Além da inclusão de versos em português, espanhol e italiano, incorpora-se ao texto um roteiro cinematográfico inserido de modo a causar ambiguidade, característica associada ao longo do livro à irreverência, à ironia e ao absurdo hilstianos.
O caráter ambíguo, em torno do qual se erguem os jogos polissêmicos presentes na obra, a exemplo da cômica duplicidade de sentidos atribuídos ao termo “galinha” nas páginas iniciais, provoca tal estranheza que Vittorio – narrador do roteiro – é afastado do texto, através da encenação de um suicídio, para que Vittorio – narrador-máscara-pricipal – recupere o domínio sobre a enunciação.
No texto de Hilda podemos observar a perícia no uso da forma do roteiro no interior de outra estrutura narrativa e a obtenção do máximo aproveitamento de tal recurso, jogando com os limites textuais, como pode ser constatado no pequeno trecho onde tal fronteira é atravessada:
era
engraçada. mas pra quê você quer uma mulher engraçada? há névoas dentro de mim,
Matias.
ah, para com isso, que névoa? não começa de novo, é aquilo outra vez? é isso ó.
(tira
rapidamente o revólver da cintura e dá um tiro na têmpora).
(eu poderia ter escrito tudo isso e agora dava um tiro na têmpora. mas não o fiz. então
tenho
que continuar, dizendo é isso ó)
mas que estranho! ele não tinha que matar a mulher? pois é, mas matou-se. (p. 18)
Anulam-se as distinções entre linguagem narrativa, poética e teatral. Repleto de dramaticidade, de comicidade cruel ou dotado de formas dialógicas apropriadas à narrativa, o texto se vale ora de marcações teatrais, mediante o uso do nome de personagens à frente de suas falas, ora obriga o leitor ao máximo de atenção ao subtrair as marcações textuais dos diálogos. Isso quando não se volta para a produção de um texto que é uma fala direta e aberta ao leitor-plateia. Os exemplos espalham-se desde a cena inicial (um diálogo entre pai e filho) até quase ao final do livro:
Júnior:
e o que é?
Matias:
o mesmo que “urquel”
Júnior:
e o que é?
Matias:
porra
Júnior:
porra digo eu, o que é afinal?
Matias:
legítimo, verdadeiro, isso é o que é, que a bebida é autêntica (p. 25)
O narrador também apresenta falas organizadas em parágrafos distintos para cada personagem ao lado de parágrafos inteiros nos quais não há qualquer preocupação em distinguir os enunciados dos personagens e os pensamentos do narrador.
O caráter teatral aparece de modo explícito na cena de uma comicidade grotesca apresentada nas páginas 28 e 29. Nela diversos indivíduos reagem de maneira diferente diante da visão de uma velha caída ao chão e com um objeto introduzido na boca. O humor negro, formado pelas várias interpretações dadas ao objeto – pau, picanha, peixe, cobra –, desarma-se com o final inusitado: a velha levanta-se e revela ter se engasgado com uma banana.
A cena surge no meio de um texto sem nenhuma preocupação em alinhavar uma história. Não há conexões. A leitura se institui pela justaposição de gêneros e pelo ritmo intenso, à beira de um delírio verborrágico, alimentado pela disjunção e pela desconexão.
Da galeria genérica hilstiana constam também alguns conselhos de suicídio, como este, redigido com fina ironia: “38. tiro na têmpora. Cabo de madrepérola. Última e brilhosa visão estética. Atenção: não tremer. Os que têm Parkinson evitem essa última solução. Eu não tenho Parkinson. Tremo, mas raramente” (p. 35). Em outro momento, o aconselhamento reveste-se de dissimulada linguagem científica:
VESPERAX
(secobarbital, efeito rápido; bralobarbital, efeito médio). dosagem: cerca de
3g (Centro de Informação em Favor da Eutanásia Voluntária, Holanda), ou seja, 30
comprimidos de 100 mg de secobarbital. esta dose corresponde a 3 g de
secobarbital associados a 1 g de bralobarbital. provoca sonolência em 15 a 60
minutos e a morte em 48 horas. (p. 51)
O narrador recorre apenas uma vez à introdução de um desenho (p. 39), destinado a tornar mais fácil a compreensão da perfeição que atribui à hora da morte, durante a qual tudo é redondo e completo, características visualizadas na figura de um octaedro dentro de um círculo.
As receitas de drinques (alcudia, Black Russian, negrone) surgem soltas e esparsas na narrativa, dando continuidade a um processo já utilizado em livros anteriores de Hilda Hilst. Parecem contribuir para criar um grau de indeterminação sobre os acontecimentos e para distanciar a realidade material na qual Vittorio está situado dos verdadeiros surtos de esquizofrenia sofridos por ele. Entre etílico, lúcido e onírico, Vittorio tenta efetuar o percurso temporal que dá nome ao livro, porém tal trajetória é marcada pelo desequilíbrio, pela imprecisão, pela incerteza.
A narrativa epistolar inscreve-se também no quadro dos recursos genéricos hilstianos reunidos em Estar sendo. Ter sido, onde aparece de modo mais significativo na passagem denominada “Carta de Dom Deo” (p. 75-76), endereçada a Vittorio por um antigo amigo agora no exercício de funções episcopais. Em outros momentos, as cartas são incorporadas à narrativa diretamente ou de modo alusivo, a exemplo da correspondência trocada entre o narrador e Hermínia (p. 20), das cartas enviadas por Karl (p. 48) ou de bilhete escrito por Lucina (p. 50).
Quase ao final do livro, o leitor é surpreendido com o primeiro conto produzido por Junior (pp. 107-108). Uma curtíssima história, bem ao estilo de Hilda Hilst, marcada pela linguagem pesada e por uma moralidade de perversão, representada pela reflexão antitética entre a vida e a beleza, de um lado, e a morte e a destruição, de outro lado.
De todos os recursos empregados pelo narrador, no entanto, a poesia parece ser a forma usada de modo mais intenso e sistemático para marcar o caráter híbrido do texto, num visível trabalho deliberado de minar as concepções genéricas usuais e dar ao livro a consistência de obra de arte fechada na qualidade da linguagem, mas aberta em relação ao aspecto formal.
A respeito da característica multigenérica da obra em questão, Alcir Pécora oferece uma observação preciosa. Apesar de ter sido elaborada com referência a outra obra da escritora, Contos d’escárnio: textos grotescos, as afirmações do ensaísta podem ser estendidas ao conjunto das narrativas da autora:
há
uma verdadeira anarquia de gêneros em sua disposição discursiva que desordena
completamente a narrativa: romance memorialístico, diálogos soltos intercalados
abruptamente à história; imitação de certames poéticos à antiga; apóstrofes aos
leitores, maltratados o tempo todo como ignorantões e picaretas, bem como aos
órgãos sexuais; contos e minicontos das personagens; alusões políticas;
comentários etimológicos e eruditos; crítica literária (a ressaltar-se o ataque
mortal a João Cabral, cuja obsessão de uma poética do rigor é traduzida como
sequela de machismo nordestino); mistura babélica de línguas; coletâneas de
instruções inúteis para performances estúpidas; paródias de textos didáticos;
textos dramáticos politicamente incorretíssimos, que fazem completamente jus ao
título de teatro repulsivo; fábulas e piadas obscenas; fragmentos de novela
epistolar; excertos filosóficos; textos psicografados postumamente etc. − tudo
isto em sucessão acelerada, despenhando precipícios e vertigens. (Pécora: 2002,
5-6)
Isso comprova ser a proliferação genérica fundamental à constituição da narrativa hilstiana. Assim, não causa nenhuma estranheza buscar similaridade com romances considerados pós-modernos, que à semelhança da teoria literária contemporânea, também questionam toda aquela série de conceitos inter-relacionados que acabaram se associando ao que chamamos, por conveniência, de humanismo liberal: autonomia, transcendência, certeza, autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, centro, continuidade, teleologia, fechamento, hierarquia, homogeneidade, exclusividade, origem. (Hutcheon: 1991, 84)
A narrativa experimental hilstiana tanto participa da linha de frente da experimentação e pesquisa de linguagem, quanto se articula com formas, recursos e processos legados pela tradição, gerando um movimento pendular que imprime uma feição particular, singularizando o seu experimentalismo ao afastá-lo daquele praticado por outras correntes literárias brasileiras e ajudando a ver nessa dupla articulação, claramente assumida pela autora, uma das razões do seu isolamento. Em Hilda Hilst, a literatura nunca é um experimento cerebral, uma arquitetura textual provocada pela necessidade de alcançar a fórceps uma nova expressão. Nela o experimento é algo visceral, fundo, intenso, não é um simulacro, mas a existência que se escreve como experiência radical.
O híbrido não é uma criação pós-modernista, acha-se incrustado no universo estético desde praticamente as origens das civilizações. O hibridismo assume uma conformação pós-moderna ao tornar-se uma prática de uso sistemático num quadro de esvaziamento de transformações literárias mais substanciais, o que faz os autores recorrerem ao vasto repertório da tradição literária na montagem de mosaicos e inventários genéricos para caracterizarem um ritmo voraz, uma múltipla temporalidade e um universo esvaziado de referências sólidas e estáveis.
Ainda que dentro de um quadro teórico delimitado pelo mapeamento da constituição do romance como gênero literário, em Mikhail Bakhtin pode ser observado como a Antiguidade já operava a fusão de gêneros em narrativas artísticas. Dentre as quatorze características atribuídas por este estudioso à sátira menipeia, algumas são particularmente relevantes:
(,,,)
8. Na menipeia aparece pela primeira vez também aquilo a que podemos chamar
experimentação moral e psicológica, ou seja, a representação de inusitados
estados psicológico-morais anormais do homem – toda espécie de loucura
(“temática maníaca”), da dupla personalidade, do devaneio incontido, de sonhos
extraordinários, de paixões limítrofes com a loucura, de suicídios, etc.
9.
São muito características da menipeia as cenas de escândalos, de comportamento excêntrico,
de discursos e declarações inoportunas, ou seja, as diversas violações da
marcha universalmente aceita e comum dos acontecimentos, das normas
comportamentais estabelecidas e da etiqueta, incluindo-se também as violações
do discurso.
10.
A menipeia gosta de jogar com passagens e mudanças bruscas, o alto e o baixo,
ascensões e decadências, aproximações inesperadas do distante e separado, com
toda sorte de casamentos desiguais.
(...)
12.
A menipeia se caracteriza por um amplo emprego dos gêneros intercalados: as
novelas, as cartas, discursos oratórios, simpósios, etc., e pela fusão dos
discursos da prosa e do verso. (Bakhtin: 1981, 100-101)
Algumas das características que constituíam, segundo Bakhtin, o campo do cômico-sério também são fundamentais à narrativa hilstiana. Parece existir, apesar da diferença de contexto e de emprego dos recursos estéticos, um nexo capaz de permitir estabelecer uma relação para o surgimento de características comuns a épocas tão distintas: a escrita multigenérica surge em tempos de crise, assinalados por eclosão de rupturas violentas, de processos que subvertem os paradigmas, pulverizando-os, esfacelando hierarquias genéricas, e, dessa maneira, pode ser entendida como expressão de um mundo em ruínas.
Ao mencionar as três raízes do gênero romanesco – a épica, a retórica e a carnavalesca – Bakhtin afirma que os gêneros do cômico-sério
renunciam
à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade estilística) da epopeia,
da tragédia, da retórica elevada e da lírica. Caracterizam-se pela
politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do
cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas , manuscritos
encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações
recriadas em paródia, etc. Em alguns deles, observa-se a fusão do discurso da
prosa e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (e até o bilingüismo
direto na etapa romana), surgem diferentes disfarces de autor. (1981, 93)
No conjunto da obra de Hilda Hilst encontramos estados psicológicos extremos do indivíduo, a tematização de diversas formas de loucura e de suicídio, comportamentos excêntricos, violações de toda natureza, escândalos, mudanças abruptas no fluxo da narrativa, aproximações antitéticas surpreendentes, sonoridades estrangeiras, fusão de prosa e poesia, entre outras características apontadas por Bakhtin.
Comprova-se, assim, que relacionar o hibridismo ao pós-modernismo, sem a necessária contextualização, pode levar à impressão de que tal característica tenha sido criada na literatura tão somente a partir das décadas finais do século passado.
Por outro lado, é necessário refletir se vale a pena cair na tentação sedutora de tomar a complexidade genérica da narrativa hilstiana como justificativa para aderir ao processo burocrático de rotulação, enquadramento e classificação de obras literárias em determinados escaninhos críticos e apreendê-la como uma representação estética do Pós-Modernismo.
A tentação pode ser evitada se for levada em consideração a precariedade crítica do próprio conceito de Pós-Modernismo, fato que, apesar de não anular aquilo que já foi conquistado nesse terreno, serve para apontar para a insuficiência de instrumentos avaliativos capazes de clarificar a leitura do livro dentro desse campo conceitual.
A recusa à classificação de obra pós-modernista ganha ainda mais força com a observação do intenso diálogo hilstiano com um conjunto imenso e expressivo da cultura em geral: seja brasileira, clássica, romântica, oriental ou contemporânea. Uma das marcas hilstianas é justamente a dialogia cultural enciclopédica.
As questões suscitadas pelos estudos genéricos não podem ser resolvidas apenas no âmbito de uma determinada concepção, seja ela sociológica, histórica ou imanentista, por mais fecunda que seja (Soares: 2004). Do corpus teórico sobre os gêneros, da Poética aristotélica, centrada na tragédia, até concepções idealizadas staigerianas; dos formalistas russos à estética da recepção; da perspectiva romântica a Croce; de Bakthin a Barthes; de E. M. Forster a Northrop Frye – nunca foi possível a formulação de territórios fixos, províncias textuais com características autônomas, a não ser nos exercícios de má literatura. As fronteiras genéricas parecem ter se constituído historicamente como realidades dotadas de fluidez e mobilidade. É o que se depreende da visão de Luiz Costa Lima em ensaio sobre o tema:
Em
vez, portanto, de tomar-se o gênero como uma entidade fechada, i. e., com um
número determinado de traços, de que se pode ter consciência e a partir dos
quais são possíveis julgamentos de valor, o gênero apresenta uma junção
instável de marcas, nunca plenamente conscientes, que orientam a leitura e a
produção – sem que, entretanto, se presuma que as marcas orientadoras sejam as
mesmas. É pela impossibilidade de se definirem exaustivamente os traços
constitutivos de um gênero que Coseriu o toma como análogo das línguas
naturais: “a uma observação mais detalhada, os chamados gêneros literários
aparecem como análogos às línguas históricas. [...] é propriamente impossível
definir o romance, a tragédia como classes. Pode-se apenas descrever
historicamente um certo romance, uma certa tragédia e pesquisar o seu
desenvolvimento histórico. O mesmo vale para as línguas históricas”. (Lima:
2002, 286)
De tudo, no entanto, o fator mais relevante é a constatação de que Hilda Hilst jamais buscou construir uma escrita cerebral, vanguardista, “novidadeira”, elaborada para impressionar pela excentricidade. Nela, à questão formal nunca pode ser atribuída posição central, da qual todas as outras sejam meras projeções. Sua obra não responde a qualquer apelo de simples atualização estilística, com raízes fincadas fora da necessidade intrínseca da criação. Não é uma ideia a ser preenchida por palavras.
O fundamental na narrativa é que aquilo que nela existe de experimental é fruto de uma experiência, corresponde a um processo interno e vital de luta por identidade e busca de uma voz. Não há limites delineados com nitidez entre forma, linguagem, conteúdo, narrador, personagem. O fluxo hilstiano é a expressão de um pensamento que voa em busca de saídas em um espaço totalmente fechado. Assume a forma de um texto agônico tensionado contra o cerco e o insulamento, considerados como o estado de existência do ser humano em ruínas, de cuja perda e irremediável solidão brotam os fios de uma escrita insurrecional construída como um desafio à morte.
Antinarrador
Segundo Adorno (2003, 55-63), a posição do
narrador perdeu o equilíbrio e a importância do período de hegemonia daquilo
que denominou de literatura realista e acabou por assumir a conformação de
verdadeiro paradoxo, pois se a forma do romance traz consigo a exigência de
narração, não existe mais a possibilidade de se narrar alguma coisa.
No mesmo ensaio, o pensador alemão afirma que nenhuma obra de arte contemporânea que possua qualidade estética pode fugir à influência do prazer da dissonância e do abandono.
A impossibilidade de narrar é associada por ele a um impedimento estabelecido pelo mundo administrado, pela estandartização do pensamento e da linguagem, pela mesmice, com os quais a arte só pode entronizar o engodo no lugar do real. Portanto, para serem fiéis à verdadeira herança realista, os romancistas precisam renunciar a qualquer veleidade de realismo.
Ao perder o domínio sobre amplas áreas da linguagem, subtraídas à sua influência pelo desenvolvimento do texto jornalístico, da indústria cultural, do cinema (na atualidade, para os múltiplos campos midiáticos), a narrativa desenvolveu um movimento interno de insurgência contra o realismo, revolta da qual a própria linguagem não pôde escapar, uma vez que o discurso esvaziado pelo poder através do automatismo e da manipulação tornou-se um núcleo gerador de formas falsas, simulacros, máscaras com as quais se perpetua a tradição e a própria criação se anula. Por esse caminho, a produção em série, a linha de montagem, os processos de acumulação capitalistas contaminaram a estética ao estabelecer caminhos, formas e moldes que lograram sucesso durante determinada época como modelos a serem perpetuados ad infinitum, na contramão do trabalho de criação artística, esse movimento eterno de insaciável pesquisa de novas linguagens. No entanto, a força desse contágio só produziu efeitos sobre a subliteratura, o texto mais mercadológico do que literário. A arte narrativa reagiu mediante um contínuo processo de rupturas que teve em Joyce o autor mais destacado, capaz de articular a rebelião do romance contra o realismo com uma revolta contra a linguagem embalsamada em forma rotineira.
O trabalho de transformação da estrutura narrativa caracteriza o texto hilstiano em todos os níveis. O real brota da destruição de formas facilitadoras de sua tradução. Não há uma linguagem-espelho, a verossimilhança não é um absoluto, o enredo não é elemento narrativo fundamental, as personagens não são desenvolvidas, o tempo não é demarcado, a linguagem não é canônica. Não há, portanto, ilusão de realidade, o real é a impossibilidade de sua própria tradução.
Em Hilda Hilst há sempre uma exacerbada consciência de deslocamento, de exclusão, um conhecimento de quem habita um não lugar. Expulsa da utopia (que sobrevive na provocação a um Deus que não responde), sobrevive na escrita inconformista, movida a um desencanto profundo com a sociedade e com a própria existência.
A velhice, a reflexão sobre a morte, a preocupação com as grandes questões do ser e do devir que estruturam Estar sendo. Ter sido permitem dar às palavras de Adorno uma flagrante atualidade:
O impulso
característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior,
converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez aparece como algo
assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto
pelas convenções sociais. O momento antirrealista do romance moderno, sua
dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade
em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência
estética reflete-se o desencantamento do mundo. (2003, 58)
Em toda obra de Hilda Hilst sempre surge a reflexão sobre o próprio fazer literário, ao lado de uma verdadeira catilinária contra o mercado editorial brasileiro. Na narrativa se encena o drama de uma obra insulada, cercada por um meio medíocre, dominado por interesses comerciais poderosos. O exercício literário é um enfrentamento aberto, um risco constante em território minado pelo consumismo, pela força da indústria cultural. Em um de seus livros, um dos personagens chega a esmurrar um editor.
A metaficção hilstiana é impregnada pelo desencanto com o mundo mencionado por Adorno:
choro
do velho que estou ou que me sinto, choro porque não sei a que vim, porque
fiquei enchendo de palavras tantas folhas de papel... para dizer o quê, afinal?
do meu medo, um medo semelhante ao medo dos animais escorraçados, e pânico e
solidão, e tantas mesas tantos livros tantos objetos... (p. 24)
Desencanto também advindo da consciência do alto valor que a sua obra trazia à literatura contemporânea brasileira, percepção que a levou em diversos momentos a reagir com amargura e sarcasmo, mediante a construção de narradores e de personagens nos quais dissimulava sua revolta contra a incompreensibilidade imputada aos seus textos. A recusa ao estigma de requintada pornógrafa revela a voz de Hilda Hilst sobreposta à de Vittorio na formulação de uma resposta direta ao rótulo que lhe fora atribuído por um conjunto de leitores desatentos: “agora só esperam de mim lubricidade como se eu fosse o dedo, a língua, o porongo, a xiriba da cidade” (p. 32).
A todo momento o narrador recorre à crueldade, seja na apresentação de cenas grotescas, a exemplo daquela em que descreve a relação sádica mantida por um amigo pedófilo com bebês, seja no tratamento insultuoso dado ao filho. Não poupa nem a si mesmo de situações grotescas, a exemplo do trecho em que se imagina numa cadeira de rodas com uma bengala de prata e madrepérola ou quando fica idealizando um monumento em seu túmulo.
A inclusão do discurso teatral à babel discursiva formada pelas narrativas de Hilda Hilst contribui para acentuar a natureza dialógica do texto. Alcir Pécora, ao chamar a atenção para o uso do fluxo de consciência pela autora, desvenda a peculiaridade de sua presença no universo da escritora:
Não
se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual a
narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos do
narrador. O fluxo em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral,
sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo
produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre
linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursos
encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação,
mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente como
falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares
incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração. Daí a impressão viva de
que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando. E atuando em cena
aberta: atuando cara a cara com uma plateia tendenciosa, hostil e
predominantemente estúpida. Mais do que a subjetividade ou a psicologia, o que
a sua prosa encena como flagrante de interioridade é o drama da posição do
narrador face ao que escreve: aquilo que se passa com alguém quando se vê
determinado a falar, mais, digamos, por efeito de possessão ou determinação
irresistível de certa forma vicária de ser e de viver do que por vontade
própria. (2002,4)
O narrador recusa-se deliberadamente a narrar, dissolvendo a narração em micronarrativas ou intercalando-a com textos construídos com uma atmosfera impregnada de enevoamento existencial no qual todas as dicções são possíveis, inclusive a irrupção de matrizes líricas genuínas sob a forma de poemas. Vittorio dispensa a sequência arrumada de fatos, a exposição linear de acontecimentos, o adensamento psicológico das personagens, opõe-se, programaticamente, a qualquer expectativa de retomada da grande tradição do romance romântico-realista, com começo, meio e fim. Tais características, somadas às propensões ensaísticas e metalinguísticas do livro que ajudam a desregular as suas propriedades narrativas, permitem enxergar a existência não de um narrador, mas a presença da figura de um antinarrador, um enunciador que não cumpre a expectativa gerada no leitor pela enunciação do relato.
Na arquitetura textual do romance, o narrador assume papéis distintos nas duas partes em que a narrativa é dividida. Na primeira parte aparece um escritor, de 65 anos, imerso no álcool e em divagações, morando à beira de uma praia na companhia de cães e gansos, de Júnior, o filho, e do irmão Matias, seu protetor e guia nas coisas práticas, com o qual mantém permanente diálogo ora de natureza circunstancial, ora capaz de causar perplexidade ao irmão, assustando-o pela linguagem, pela complexidade do pensamento ou mesmo pela loucura. Em alguns momentos surge uma expressão comovida dotada de intenso lirismo:
precioso
é o que tu és, irmão-colosso, hás de me tomar as mãos quando vier a de passadas
largas, a curva, a envesgada, a que vem súbita numa lufada, a pequenina também
de dentinhos escuros vestida de negro organdi, a velha-menina com sua guirlanda
de ossos: “é hoje, Vittorio! é hoje!” e talvez dance à minha frente um minueto,
os cascos em ponta e as toscas castanholas ressoando baças no assoalho da casa.
(p. 54)
Já com o filho a conversa sempre assume um tom agressivo, revestido de ironia ou em uma conotação declaradamente insultuosa. Só na segunda parte, após a leitura de um texto de Júnior, o narrador é capaz de evitar a animosidade contra o filho.
Vittorio planejara a própria solidão. Livrara-se da mulher, Hermínia, já com mais de cinquenta anos, mediante um estratagema que a induziu à união com o jovem e fogoso Alessandro. Para alcançar seu intento o narrador ensinou ao rapaz tudo o que sabia sobre a poesia de Petrarca, considerada por ele infalível para seduzir a alma feminina. A trama de deliberada busca de um espaço individual distanciado de convívio fora do pequeno núcleo familiar − “ainda bem que não há vizinhos” (p. 65) − pode ser entendida como um processo ritualístico de preparação para a morte, do qual, seguramente, as referências a métodos de suicídio oferecem indícios comprobatórios.
A relação entre Vittorio e Lucina só amplia a carga de angústia e desencanto. A mulher revela a impossibilidade de um sentimento autêntico, capaz de retirá-lo da solidão. Lucina-Licina-Juno, corpo fictício de Lâmia, Taís, Messalina ou Frineia, parece antes uma alucinação do narrador para revelar, na representação da figura de uma mulher-símbolo, os limites do corpo e para denunciar a falsa realização obtida no comércio de prazeres como simulacro de um estado de felicidade.
A segunda parte da narrativa, separada da primeira por um conjunto de poemas, revela a eclosão de uma crise profunda, razão pela qual Vittorio teve que ser internado. A parte final possui menor extensão, contudo nela predomina um ritmo mais forte, pois o processo de loucura se acentua, fato percebido por Vittorio:
me
vejo negro, artificioso como quem não se vê. a loucura é sépia. ou talvez mais
pro ovo. a loucura é algures, não em mim. os corvos naquele céu eram de um
outro, minha loucura é rajada, esparzida de cores, loucura é escarcéu, é não, é
chumbosa, pesada, o olho do cafre sobre aquela que lhe arranja o dinheiro, é
enviesada, esquiva, mas vigilante, o olho do meganha sobre o biltre. é nada, é
tímida, medrosa, se acasala nos cantos. (p. 88)
Outra modificação que altera o ritmo narrativo é que a tensão causada pela reflexão-expectativa da morte aflora com maior intensidade. As personagens da primeira parte participam em menor proporção, à exceção de Matias, sempre no exercício das funções de confidente. Surgem o dottore, o barman-mordomo-doutor em filosofia Raimundo e uma velha que cuida do convalescente Vittorio.
Ao final, todas as vozes são reveladas como máscaras de um narrador proteico, um antinarrador: “Aqui estou eu. Eu Vittorio, Hillé, Bruma-Apolonio e outros”. (p. 110)
Vozes no espelho
A narrativa apresenta enredo rarefeito, ao longo do qual as personagens não adquirem em momento algum consistência, sucedendo-se velozmente como interferências no fluxo narrativo, uma vez que são transformadas em projeções de uma voz obsessiva e obcecada com o seu próprio ser-no-mundo. A proliferação de vozes no lugar marcado para o narrador quebra a expectativa de uma estória a ser lida e impossibilita o adensamento psicológico das personagens.
As faces de Hilda formam “umasómúltiplamatéria”, segundo o verso final do conjunto de poemas com o qual se encerra a primeira parte do livro. Suas personagens são uma só, assim como podemos interpretar toda a sua ficção como um único livro. As personagens que cria são apartadas da realidade, estão afastadas de qualquer possibilidade de autonomia, pois giram em torno das candentes questões apresentadas pelo narrador, são mais caminhos do que seres fictícios; mais formas de uma possessão demoníaca através da qual o narrador extravasa dor, revolta, desamparo, sarcasmo, niilismo, às vezes ternura, compaixão e lirismo. As personagens ainda fornecem, de modo insaciável, a satisfação de todos os desejos e perversões do narrador para o qual, aliás, a perversão também é santidade. Nenhuma personagem tem conforto, segurança, todos são arrastados na torrente de questionamentos infinitos, ligados à vida como se fossem alimentados por fios em curto-circuito.
No livro encontramos Vittorio, o protagonista, já aos sessenta e cinco anos, sempre com um copo em uma das mãos e um livro na outra, à procura de iluminação temporal sobre a sua existência e sobre o envelhecimento. Vale-se da ambiguidade para retratar a velhice como despedaçamento e iluminação, ao mesmo tempo em que usa a memória para recompor os acontecimentos, as paixões e os fracassos amorosos, sempre se alimentando de humor e ironia.
No interior dessa busca incessante de finalidades e horizontes, o narrador tenso e agoniado apresenta cenas, casos, contos, ora patéticos, ora escabrosos, verdadeiras ilhas narrativas nas quais se refugia da reflexão oceânica, realizada com enorme intensidade lírico-trágica, sobre a morte e sobre Deus.
Embora presentes, as solicitações da carne surgem sob a ótica da decomposição física que exaure os limites do corpo: “não quero mais nada, Hermínia, já sabes, só penso na morte, nos meus ossos lá embaixo, no nada que serei (tu, um dia, também, isso me consola, se só eu é que ficasse solitário lá embaixo seria demais para mim” (p. 23). Passagem em que joga, com notável resultado, com a duplicidade da palavra “baixo”: parte física relacionada à genitália; terra sob a qual ficam os ossos. A ambiguidade acentua dolorosamente as formas da decadência do ser humano.
Além das referências feitas por Vittorio sobre si mesmo – intelectual, bêbado, decadente −, são poucas as passagens com informações sobre ele, como estas, extraídas de um diálogo entre Alessandro e Hermínia:
é
inteiro deboche lá por dentro, tem pânico de ser pomposo, [...] tem alma
eloqüente, gosta de grandes acordes, adora os russos, aqueles sinistros do
piano, aquela pausa... [...] odeia o dedilhar das notas agudas, odeia sopranos
estridentes, esses que se esgoelam nos nos trinados... (p. 43)
Acrescente-se o Vittorio voyeur que, de uma abertura feita na parede da biblioteca, pode observar o que acontece na sala. Aliás, a biblioteca simboliza espaço tão fundamental para o protagonista que chega a ser o lugar onde dorme.
Já Hermínia é a ex-mulher da qual se livrara mediante um estratagema para ocupar-se exclusivamente das questões que o atormentavam.
A mãe de Júnior é sempre referida de maneira pejorativa: rameira, puta, vaca. Figura distanciada na narrativa: relaciona-se com Vittorio apenas por cartas ou surge, então, na memória do protagonista. O narrador não esconde o artifício ficcional da construção da personagem, explicita-o com clareza em duas ocasiões. A primeira delas de modo nominalista: “Hermínia é seco comprido estreito e eras tão dulçorosa e meiga e tão pequena” (p. 20). No segundo registro o caráter metafictício é bem mais contundente: “não deveria ter inventado Hermínia, ela me aborrece, tem pouquíssimo a ver comigo mesmo, vejo-a quase seca, alta, distanciada” (p. 60). O mesmo expediente é adotado pelo narrador em outra passagem, na qual tenta livrar-se da presença de Rosinha, trazida pelo próprio pai para deleite sexual de Vittorio: “e aqui está ela de novo, não me sai da página” (p. 45).
Matias, o irmão, é descrito como um homem de 55 anos, forte, saudável, sexualmente ativo, prático, quase sempre razoável, ajeitando todas as situações, descomplicado, um santo luxurioso sempre às voltas com mulheres. Sempre está ao lado do irmão. Menos sofisticado do que Vittorio, nos diálogos limita-se a fazer perguntas e a ouvi-lo.
Júnior é o filho constantemente tratado com sarcasmo e ironia (Vittorio chega a observar semelhança física entre o filho e um cavalo usado pela mãe). Ouve sempre o discurso rancoroso de Vittorio contra Hermínia. Possui vinte e poucos anos. Pratica natação. Só posteriormente, já na segunda parte do livro, pai e filho aparecem envoltos por um clima mais amistoso. O filho mostra ao pai o seu primeiro conto e revela ter deixado de nadar.
Sobre Lucina, as observações também são mínimas. Tem coxas pesadas, canelas finas, é jovem, bela, sem barriga, lisinha e advogada. Na linguagem azeda de Vittorio – “rábula e puta”. O narrador ocupa-se, todavia, da etimologia. Associa Lucina a Juno, deusa responsável pela proteção do nascimento na antiga Roma. As relações de Vittorio com Lucina são marcadas por um visível desprezo já que atribui a ela interesses pecuniários.
Se estas personagens já são bastante esvaziadas, todas as outras vozes são moldadas de modo a atender os interesses do narrador. Oroxis, Dom Deo, Rosinha, avó Blandina, entre outros, são autênticas aparições que se esgotam no minúsculo espaço textual por elas ocupado.
As personagens femininas parecem arquitetadas com todo o repertório de preconceitos machistas. Na verdade, a leitura do texto hilstiano permite ver, na exposição do preconceito, um modo irônico de desconstruí-lo. O narrador extravasa em vários momentos uma visão caricata do feminino: as mulheres são percebidas como simples buracos a serem preenchidos pelos homens sem qualquer envolvimento afetivo; é de extrema raridade a existência de mulheres engraçadas; são seres falsos, dissimulados, a exemplo de Rosinha, a quem denomina “boi sonso”; o caráter trágico da relação incestuosa de Jocasta é ilusório, pois ela teria consciência da situação e aproveitava-se do vigor e da juventude do filho; as mulheres querem o tempo todo sexo e nada mais; o veneno (símbolo de covardia e traição) é a forma preferida pelas mulheres para matarem.
Ecos de outras vozes
No fluxo narrativo, a autora estabelece um diálogo circular com outros textos, numa relação inter e intratextual, revelando-nos uma clara consciência da produção de uma obra de extrema originalidade, coerente e coesa no peso concedido à construção de uma linguagem que permite explorar todas as dimensões da língua: canônica e não canônica, casta e herética, alta e baixa, chula e erudita. Um corpus narrativo centrado na experimentação como processo unificador entre vida, pensamento e linguagem, paga às vezes um alto preço por existir na zona de fronteira, nos limites distanciados de qualquer convenção normativa.
O diálogo ininterrupto com as mais diversas fontes culturais cria para o texto hilstiano uma natureza ensaística, ao alimentá-lo de referências que possibilitam mover a constante reflexão que mobiliza todos os narradores. Nunca as citações são agenciadas apenas para ilustrar o texto como mera erudição, são pontuações críticas do pensamento ficcionalizado no texto.
Intertextualidade
Quanto às referências intertextuais, Vittorio – não se pode esquecer da sua condição de intelectual – mistura em sua prosa uma multifacetada biblioteca, como se fosse impossível desencarnar seu texto de suas lembranças ficcionais.
Esta é uma das marcas fundamentais do estilo hilstiano: a incessante referência a autores, livros e personagens (reais ou fictícios) do mundo da arte e da cultura. Aqui pode ser observado, em relação ao caráter pornográfico atribuído aos seus textos, um ponto de vista inovador. As referências ao universo mais alto da literatura, a crítica a determinados autores, a eleição de outros, a discussão de ideias e de trabalhos do universo artístico, filosófico e científico não são recursos apropriados ao universo de revelação do interdito com intenção de prazer não estético que é o caráter mais pertinente ao campo pornográfico. O pornográfico, em Hilda Hilst, encontra-se a serviço de uma estética de choque, de ruptura e do absurdo.
Outra faceta notável da obra é a proximidade da técnica narrativa hilstiana com os procedimentos dos grandes autores associados a concepções vanguardistas do século XX. Entre outros possíveis e prováveis diálogos (Joyce, Kafka, entre outros), é importante assinalar semelhanças com a linhagem beckettiana.
No romance Molloy, de Samuel Beckett, o protagonista também habita um espaço exíguo no interior de uma casa; permanece preso a um quarto, sintomaticamente o quarto da mãe. As pessoas e as imagens à sua volta aparecem num plano ilógico, tudo surge misturado de maneira grotesca e irreverente. As personagens de Beckett sempre se defrontam com um mundo absurdo, cuja legibilidade é impossível.
Se as personagens hilstianas não são propriamente caricaturais, como as do autor de Esperando Godot, vivem sempre uma situação-limite, responsável pelo ar deslocado que exibem e por sua estranheza: estão obcecadas por uma angustiante e angustiada reflexão sobre a própria existência. Também a obra beckettiana é uma obstinada reflexão sobre a existência, da qual resulta a negação da esperança e da salvação. A angústia de viver não promove heróis, Beckett chega a zombar do sofrimento. Sua narrativa, marcada pelo esvaziamento de enredo e personagem, é de uma radical descrença no homem. A natureza reflexiva imobiliza qualquer ação. A linguagem é a da solidão e do silêncio.
Em O inominável a literatura praticamente abre mão de suas referências. As personagens de Beckett ficam reduzidas a discursos, a existência é transformada em um autêntico processo abstrato, um universo desconexo produzido por uma consciência separada não só do mundo exterior, mas também do próprio corpo.
Na obra de Hilda Hilst podem ser observadas algumas características capazes de aproximá-la do universo beckettiano, embora não suficientes para apagar a sua singularidade: a voz feminina capaz de relançar sempre a mesma pergunta, a tensa relação com o outro – o homem e o mundo impositivos –, a quebra de fronteiras e a culpa por descobrir a natureza do desamparo.
No rol das referências fundamentais, a figura do pai de Hilda Hilst, o poeta Apolônio de Almeida Prado Hilst, ocupa um lugar eminente. A rede de referências de Estar sendo. Ter sido alimenta-se ainda de Katsushika Hokusai, escritor japonês, de Sófocles, de Petrarca, de Apuleio, da Bíblia, da Torah, do Bhagavad-Gita, de Shakespeare, de Kurosawa, de Kierkegaard, de Ovídio, de Balzac, de Flaubert, de Oscar Wilde, de Antônio Vieira, de Rosvita Von Gandersheim, de James Ward, dentre outros.
Intratextualidade
No campo intratextual há a participação de várias personagens de outras narrativas transpostas para as páginas de Estar sendo. Ter sido. Essa característica confere à última obra de Hilda Hilst um caráter aberto e transgressor, bem representativo da natureza de toda a sua produção ficcional. A intratextualidade, no entanto, não se esgota apenas na intervenção das personagens de outros livros, também se organiza pela incorporação ao texto de temas, motivos e procedimentos nucleares às narrativas anteriores.
Presença importante é a de Hillé, vista como grande amiga de Vittorio. Apesar de considerá-la esquisita e dizer para o irmão que este não gostaria dela, a primeira invocação deste nome surge apenas para retratar uma cena grotesca em que um namorado dela é o centro das atenções devido à excentricidade surrealista de comer copos de uísque.
Na segunda aparição de Hillé, contudo, há a explicitação mais delineada de sua personalidade:
Hillé
disse um dia: dá-me a vida do excesso, o estupor. pediu isso a você? pediu a
Deus, Matias. e lhe foi dado? perdi-a de vista, [...] “Hillé está há muitos
anos esquecida de si mesma”. fala mais claro Vittorio. esquecida de si mesma e
de tudo o mais, olha as árvores e chora, lembra-se de ter sido árvore. então
está mais é se lembrando muito. foi árvore e sente piedade, foi cadela e sente
piedade, foi esses bichos pequenos. que bichos? doninha rato lagartixa. ahn. e
sente compaixão por todos eles. estás me dizendo que tua amiga Hillé ficou
louca. não, era lúcida demais para pirar. mas são os lúcidos demais que
enlouquecem? tu chamas loucura isso de se saber mil outros? (p. 38)
A natureza de Hillé pode ser caracterizada por um panteísmo vitalista, a vida assume todas as formas, num mecanismo de homologia com a multiplicidade de vozes narrativas. Tudo está relacionado a tudo: “tudo tem a ver com quase tudo. tu pensas que não, mas tem. números equações teoremas beleza e coesão” (p. 61).
O processo de transformações contínuas é uma das pontas que alimentam o caráter encantatório e mágico da linguagem hilstiana. Nucleado pela proliferação de anamorfoses, joga a linguagem para o campo de outras dimensões situadas fora plano da pura racionalidade. O ritmo vertiginoso das mutações e a frequência da autora às páginas da cultura clássica permitem observar a possível influência da mentalidade pagã de As memorfoses, de Ovídio, sobre o pensamento da ficcionista.
Na carta de Dom Deo, a informação dada pelo missivista pode ser entendida como a comprovação da preferência de Vittorio-Hilda Hilst por Hillé:
aquela
de quem tanto gostavas. soube por uma vizinha, uma destrambelhada, Luzia, que Hillé
deixou-se morrer embaixo de uma escada, e que sua última amiga foi uma porca.
Hillé
chamava-a apenas com este nome: senhora P. disse-me também Luzia que a senhora
P morreu com Hillé, à mesma hora, e no mesmo dia. (p. 76)
A certa altura do livro, surgem os irmãos Karl e Cordélia, personagens de Cartas de um sedutor. As cartas exibem os relatos das experiências de um burguês blasé e impiedoso a respeito de suas aventuras e devassidões sexuais, com direito a todas as formas de amor, em que sobressaem a fixação, em termos sexuais, pela irmã; as (in)confidências sobre os casos do pai; e a revelação, a que o leitor tem acesso pela leitura indireta das respostas da irmã, do caso desta última com o pai, de que resultou o filho Iohanis, com quem ela igualmente mantém relações sexuais.
Incluídas em Estar sendo. Ter sido as personagens extrapolam o nível de simples menção, uma vez que desempenham uma função ficcional no texto hilstiano. Vittorio retrata Cordélia como uma de suas inúmeras conquistas amorosas:
Cordélia
era uma beleza. ah, essas mulheres que se parecem a deusas! trepei uma vez com
ela. pena que foi só uma. tive que usar uma faixa de tenista na cabeça. o pai
era campeão de tênis, e ela só gozava se o parceiro usasse aquela faixa,
qualquer faixa, minha linda, eu disse, ponho faixa onde quiseres, posso até
ficar inteiro enfaixado. só não enfaixo as prendas. (p. 48)
Vittorio fica com a faixa, um fetiche que simboliza a relação incestuosa entre Cordélia e o pai dela.
A irrupção dos irmãos na obra analisada é motivada pela lembrança do caráter epistolar da comunicação entre ambos. Ao valer-se de tal analogia, já que a referência ocorre no momento em que Vittorio pensa em escrever uma carta para Lucina, o narrador aponta, na realidade, para o peso muito grande do texto epistolar na constituição do universo ficcional hilstiano, portanto a presença de outras personagens remete a processos similares nele existentes.
Stamatius, também inserido na complexidade narrativa de Estar sendo. Ter sido, é inicialmente uma personagem do relato de Karl. Com o desenvolvimento da narrativa, desaloja-o do centro narrativo e ocupa o lugar de narrador de Cartas de um sedutor. Ele é um perdedor em todos os sentidos: escritor fracassado, perdeu os dentes, os móveis, a hipoteca da casa e a mulher. Sua posição marginal é assinalada pelo seu caráter de mendigo culto, refinado, lavador de livros encontrados no lixo, lavagem da qual o seu próprio texto emerge. No lixo encontra livros de Tolstoi (A morte de Ivan Ilitch), de Filosofia, de Marx, a Bíblia e, principalmente, a obra completa de Kierkegaard.
Em Estar sendo. Ter sido, Vittorio utiliza Stamatius para vergastar a figura dos editores, sempre pintados com cores negativas: “o Stamatius é que tinha ódio de editor, quebrou a cara de um, foi quebrando até o infeliz jurar que sim, que ia editá-lo em papel bíblia e capa dura. dizem que quebrou a mão também. a mão dele, Stamatius. o outro ficou banguela” (p. 62).
Envolto em tralhas, no desconforto, cheio de feridas, com a boca desdentada por tensões e vícios, Stamatius não pode ser perdoado. Sua miséria resulta do risco assumido em não fazer concessões, fazer da linguagem o campo de busca de uma plenitude nunca alcançada, porém de cuja busca não desiste nunca, mesmo deslocado ou no meio de cenário e cena mais infames. Assim Stamatius/Karl/Eulália são outros nomes da mesma voz que esteticiza a existência, campo de experimentação e indagação ontológica, de acordo com a visão kierkegaardiana:
O
tom poético era o excedente fornecido por ele próprio [o diário]. Esse
excedente era a poesia cujo gozo ele ia colher na situação poética da
realidade, e que retomava sob a forma de reflexão poética. Era este o seu
segundo prazer e o prazer constituía a finalidade de toda a sua vida. Primeiro
gozava pessoalmente a estética, após o que gozava esteticamente a sua
personalidade. Gozava pois egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe
oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; no segundo caso, a
sua personalidade deixava de agir, e gozava a situação, e ela própria na
situação. Tinha a constante necessidade, no primeiro caso, da realidade como
ocasião, como elemento; no segundo caso a realidade ficava imersa na poesia.
(Kierkegaard: 1974, 147)
Para justificar seu desencanto com as mulheres, especificamente com Lucina, amante impregnada por um tedioso discurso jurídico e movida por interesses materiais, Vittorio recorre à lembrança do amigo Crasso, narrador e protagonista de outro texto hilstiano – Contos d’escárnio: textos grotescos:
meu
amigo Crasso, chateou-se bastante com uma dessas chamadas cultas-togadas, essas
rafinés metidas a sebo que só comem rouxinóis e sovacos de pomba, “um
trabalhão, uma mão-de-obra, Vittorio, se pintar alguma, livra-te dela”. mas
pelo menos foi boa de cama?
“pois
foi, Vittorio, mas gastei mais do que se tivesse fodido a Lurdinha o ano
inteiro”. (p. 50)
Crasso, na realidade alter ego de Hilda Hilst, ao expor as razões que geraram o Contos d’escárnio: textos grotescos aponta para marcas fundamentais da poética hilstiana:
Resolvi escrever este livro porque ao longo
da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei
ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no
entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que
os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não
posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência
ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e
fim. Então não vou escrever um romance como ... E o Vento Levou ou Rebeca,
Os Sertões e Ana Karenina então nem se fala. Os verbos chineses não possuem
tempo. Eu também não. (2002, 14)
Não são apenas as intromissões e invasões de personagens de obras anteriores no livro que desenham e fortalecem a importância da intratextualidade, existem ainda diversos níveis de retomada incluídos em Estar sendo. Ter sido, como já foi observado pelos autores do posfácio à primeira edição da obra:
No
campo intertextual – tanta coisa resplende – há também vários exemplos:
“eu-menino-luz-tremente inteiro” lembra “Agda menina-santa”; o “tigre-menino”
faz ressoar o “menino-porco de Hillé”. “O cara mínima, o Sem-Forma”, lembra a
busca do “Pai-Deus” em Qadós. Espaços de “O oco” se confundem na sintaxe:
“estou na cama ou nos juncos? estou molhado de esperma ou de urina?” atualizam
“Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo?” A verticalidade se
instaura: o poço e a clarabóia de Ruiska, o banco de cimento onde se sentava o
pai de Agda, sou um novo nada ninguém, de Amós Keres. (Machado: 1997, 112)
Deus: a voz emudecida
Os narradores hilstianos são energizados por
uma obsessão que atravessa todos os textos e dá sustentação a todas as dúvidas
e questionamentos teóricos, místicos e metafísicos: o abismo de deus. Do
diálogo com o vazio surge a agonia espiralizante na qual a voz narrativa
asfixia o próprio corpo e libera o veneno mortal das palavras expulsas do
reduto mais profundo do ser. Uma linguagem ofídica se instaura como uma
tentação verbal a um deus emudecido e ausente. A intangibilidade divina não
provoca a desistência, antes parece mobilizar mais recursos e aprofundar a
energia vital que explode qualquer racionalidade. É desse diálogo exasperado e
exasperante que brotam lirismo e morbidez, luxúria e santidade, blasfêmia e
ternura. Tudo é agenciado em direção a um resposta que, não amanhecendo no
horizonte, faz do silêncio um incessante discurso. A voz de Deus ressoa no
vácuo, lá onde o som não se propaga. O deus hilstiano é o criador de um
alfabeto de negações e silêncio, de um movimento cuja negatividade impulsiona o
ser e faz com que, ao mover-se, pense que no caminhar há um impulso misterioso
dado por algo que está fora do ser, um vento do qual surge a dúvida, o
inesperado, uma tempestade da qual a loucura, a dor, a velhice e a morte são
emanações incompreensíveis. Talvez porque o próprio humano seja inominável e
incognoscível, colocar-se em questão é também uma forma de prece, mesmo sem fé,
significa dar asas às palavras que voam ávidas de origens e finalidades. O
cruel exercício do sem sentido, a dolorosa caminhada em um universo vazio, o pó
da existência, mesmo sob a capa dos desregramentos, nos labirintos das
perversões, no coração pulsante de gozo, da orgia e da entrega aos sentidos,
sempre se move no abismo-deus, nas suas ruínas, no mundo concebido como um
campo abandonado pelo divino.
A natureza reflexiva da linguagem hilstiana não pode ser apreendida com exatidão sem o entendimento da matriz especulativa que lhe dá vigor e beleza. Compreensão que pôde ser percebida por Vera Queiroz em estudo sobre a autora:
Se,
por um lado, tal discurso articula-se em meio a perguntas de vigorosa ressonância
filosófica, religiosa e mística, no sentido de busca por uma transcendência que
supere os vazios inerentes à condição humana, utilizando então uma dicção
culta, não raro de alto lirismo e de metáforas inaugurais, por outro lado,
quando as respostas a tais perguntas falham – e elas falham quase sempre –, a
ira incontida, a fúria e a iconoclastia apossam-se do discurso, e a frase será
então uma torrente incontrolável e incontornável de impropérios, de imagens
coprológicas de blasfêmias. Tal processo ocorre sem mediações, de modo que o
leitor se vê numa montanha russa, em alta velocidade, de onde não pode descer –
ao menos enquanto viger seu pacto com a leitura. (QUEIROZ: 2000, 19)
Deus é retratado por Hilda Hilst de modo anticonvencional, sem grandeza, sem excepcionalidade, sem majestade. Em sua primeira aparição Vittorio o descreve para Matias, que esperava um ser grandalhão e vermelho, como um tipo mignon com voz de moça e pulsos e canelas finas, acompanhando por uma figura atarracada sempre mastigando e engolindo as fantasias dejetas do divino. Deus surge, assim, sob a forma de um ser duplo, com um lado de sombras a alimentar-se de seus erros, prova completa de sua imperfeição.
Comparado a um frio comediante, Deus é também um ser que diminuiu de tamanho, daí ser tratado como o “Cara-mínima”. Por um lado, o narrador vergasta a inexplicabilidade do sofrimento humano, por outro, aponta o esvaziamento progressivo de sua imagem para a humanidade. A redução de seu poder não o impede de considerar Vittorio como gentinha.
O narrador volta-se em determinado momento
contra Deus, em belíssima passagem, invocando uma série de limitações divinas e
rejeitando-o como criador de um mundo dominado pelo absurdo da condição humana.
sou
um bicho-ninguém olhando para o alto, talvez um sapo, um cão pelado, alguém me
espanca as patas as costas, salto, encolho-me nos cantos, vem Jeová aos berros:
Vittorio! Vittorio! ama-me! é para o teu bem o sofrimento! é luz sofrer! dou
bengaladas no ar, estou furibundo: sai cornudo, nascido do nada, é porque é
incriado, sem mãe, é por isso que odeias os que tiveram um ventre como casa, é
porque nem casa tens que sobrevoas teus pântanos para ver se encontras um
irmão-alguém, porque és único, sem parecença, um olho-terror, um olho-abismo,
um dissoluto olho-ígneo, um olho condenado à eterna solidão... sim, porque
ninguém quer ser o medo de si mesmo. e não podes morrer. a cada dia sugeres aos
homens as mais torpes invenções, tudo isso para ver se tu mesmo cais morto, e
contigo o imundo que inventaste. (p. 59)
A irreverência e a dicção irônica recobrem em outros momentos a representação de deus. É o caso da orientação para que Jeová dirija-se a um esgoto numa praia próxima e da constatação do caráter lírico e romântico da linguagem divina.
A blasfêmia, a provocação, os impropérios dirigidos a Deus têm a sua função explicitada na narrativa em um trecho da carta escrita por Dom Deo. O autor afirma que aos blasfemarmos nos transformamos um pouco em santos, sob a alegação de que ao excitarmos o Outro acabamos por provocar o rompimento do estado de inércia em que ele vive e a fazer com que aja a nosso favor naturalmente.
Quando Deus resolve não aparecer mais, Vittorio fica tão transtornado que, num claro apelo ao sórdido e ao coprológico, chega a pagar a Rosinha para procurá-lo em seu próprio ânus, enquanto dirige a Ele palavras ásperas:
facínora, sai daí! ontem ouvi dizer que uns famintos comeram um seio, a mama, a teta de alguém encontrada no lixo, no monturo. e tu cada vez mais jubiloso se encolhendo, se fazendo tule, renda, logo mais serás apenas assovio, aquele que ninguém ouve, só os cães, e ninguém há de ter aquele apito, aí sim, esquecido depois de um milhão de luas, como hás de rir de mim. e os espelhos hão de estar aqui, e também por aqui o meu risível e contorcido esqueleto, o idiota do Vittorio, aquele bufão bêbado, por mim se torcendo inteiro... por ti yo me rompo todo etc. ele está aí, estaí, Rosinha, com seu chapéu de gomos de seda, gomos estufados, sua gola de rendas, franzida, alta, creme e prateada, o blusão de veludo, sabe, Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo. (pp. 89-90)
Após uma cena na qual Vittorio revêu a mãe, quando ainda era um menino, junto ao Cara-mínima, em uma igreja, o narrador imagina-se sobrinho de Deus e, em conversa com Ele, ao indagar sobre o significado de energia, constrói uma imagem na qual o criador obtém um perfil de literato: “Aí deus usou muitas palavras complicadas e o sobrinho disse: por que você não faz um rabo de papel com todas essas palavras complicadas escritas nele? Deus achou boa ideia e por isso até hoje temos um rabo de papel, tropeçamos nele a cada dia, nas palavras também” (HILST: 1997, 99).
A narrativa contém ainda duas formulações estruturadas em torno da presença e importância de Deus. A frase final da segunda parte: “Eu de novo escoiceando com ternura e assombro também Aquele: o Guardião do Mundo” (p. 110) e o belíssimo poema intitulado “Mula de Deus”, com o qual a narrativa propriamente termina, e cujo título guarda uma conotação bastante expressiva e explicitadora da posição de Hilda Hilst em relação a Deus: a de autora em transe, a de ficcionista possuída pelas vozes múltiplas que emanam de ou para o plano divino, a de um ser cujos corpo e alma são instrumentos pelos quais uma linguagem jorra num fluxo incessante, verdadeiro rio revolto de águas e palavras desordenadas, anárquicas e febris, a percorrer o deserto de deus.
O caos é vital ao processo criativo de Hilda Hilst: “Tal desordem (...) funciona na arte literária de HH como motor de uma engrenagem discursiva movida pela fúria iconoclasta, pela quebra dos padrões e pela vontade de dobrar, enfim, os limites da palavra, da sintaxe e das convenções banalizadas” (QUEIROZ: 2000, 13).
As paixões, a devassidão, a floração dos instintos, o prazer e o encanto provocados pela beleza física, cuja perda é tematizada em Estar sendo. Ter sido, nunca geram acontecimentos apartados do plano divino. De acordo com o pensamento desenvolvido por Vera Queiroz – “os contatos dos corpos, que se apresentam como sinais de erotismo, devem ser compreendidos como dimensões sígnicas da tentativa, sempre falhada, de aproximar-se do corpo luminescente de Deus” (QUEIROZ: 2000, 31).
O ser humano, prisioneiro de abismos e do caos, vive na linguagem a única liberdade possível. À procura de explicações para a existência de um universo de escombros e absurdos, acaba por movimentar o mundo graças à energia gasta à procura de, em busca de. De quê? Não importa, talvez Deus seja mais uma aposta do que uma resposta. Essa parece ser a investida hilstiana na dimensão divina.
Conclusão
Qualquer referência aos textos de Hilda Hilst não deixa escapar a questão da obscenidade na configuração da obra. No caso específico de Estar sendo. Ter sido, o caráter obsceno confere à narrativa uma força demolidora que desconstrói os paradigmas da literatura pornográfica graças a um processo de aguda ironia, à perspectiva crítica da enunciação e aos requintes de uma linguagem capaz de incorporar os mais diversos registros. Uma leitura fixada apenas no apelo ao escabroso e às solicitações de uma sexualidade mais vulgar, portanto, é uma recepção incompleta do universo hilstiano; nele a palavra obscena funciona como aquilo que está “fora de cena” (Moraes, 110), isto é, refere-se àquelas cenas que não são apresentadas no palco da sociabilidade cotidiana. É o espaço do proibido, do não dizível, do censurado.
Se tal característica permite perceber a natureza dramática da escrita hilstiana, por outro lado vale a pena ressaltar que a obscenidade não é o centro, mas parte de um processo agenciado por uma pluralidade de temas: morte, deus, amor, velhice, questões metafísicas, problemas sociais tratados com sutileza e ironia etc.
O leitor desavisado sofre uma espécie de golpe violento ao ser iniciado em HH, torna-se para ele uma processo complexo identificar as diferentes sequências narrativas, relacionando-as a personagens mutáveis em um universo ficcional que contrasta imagens, que aproxima o inesperado e que não se curva às relações causais próprias da referencialidade à qual faz alusão. O espaço da sujeira e do vocabulário chulo convive com a assepsia da erudição.
A pornografia não é imposta pelo consumo, ela resulta da repressão, da violência e da interdição. Por primária, instintiva e natural pulsão sexual, a linguagem do reprimido retorna como fetiche do proibido. Não é o mercado que cria a pornografia. A imaginação tenta traduzir uma linguagem cuja interdição é uma forma de invisibilidade, essa tradução ao revelar a forma proibida (re)produz prazer. O prazer pornográfico esgota-se nos limites da sexualidade básica, animal, em sua fisicalidade. O prazer advindo da obscenidade envolve uma dimensão social, um deleitar-se comum que ultrapassa os limites da pura sexualidade, invadindo o estético, o político e o social.
A narrativa de Hilda Hilst, portanto, subverte o pornográfico, retira o rótulo de interdito, de escrita menor, ultrapassa os limites entre o erótico, o obsceno e o pornográfico, criando uma obra em uma fronteira que a crítica ainda não conseguiu assentar com nitidez, apesar de todo o repertório conceitual. Talvez pelo extraordinário grau de indeterminação da natureza humana, por ser uma região profunda, insondável, apesar de a razão tentar mapeá-la. O atávico, o primordial, o caráter fundador na pulsão sexual, por não encontrar no vazio o eco onde o seu rosto reapareça, lança-se à busca. É esse o caminho cruzado por perversão e santidade, escrita suicida e escrita de desamparo, prece e blasfêmia, insulamento radical e radical desejo de encontro do Outro, Ele, no cerne da obra hilstiana.
A pornografia tem sido, ao longo do tempo, um reduto masculino. Uma linguagem normalmente produzida por homens, destinada à leitura de um público masculino. Nele a mulher é alvo, objeto de manipulação. Ousar invadir domínio tão machista já provoca estranheza em relação à mulher, embora diversas mulheres tenham cometido tal desatino. Maior é o espanto quando alguém invade a cena pornográfica para pervertê-la, e a perversão de Hilda Hilst é furtar à interdição a sacralidade de ser um ritual encenado em teatro subterrâneo e dar ao texto qualidade estética. A pornografia em Hilda Hilst é uma linguagem ascética encenada a céu aberto. Não esconde suas chagas e feridas, não domina seu alto grau de insanidade. É capaz de mostrar-se e evitar todo o grau de exibicionismo implícito em qualquer texto pornográfico.
Na obra hilstiana podemos observar a presença em todas as narrativas, de uma forma ou de outra, da existência de seres desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.
Frente ao enigma da morte, vivendo em um mundo desordenado, vazia de Deus e dos homens, Hilda Hilst buscou abrigo – entre impropérios, blasfêmias, teofagia, metafísica, grotesco e sublime – na linguagem, a única redenção possível.
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* Publicado no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea - 2a. ed. em http://forumlitbras.letras.ufrj.br/

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