
Dublinesca, a elegia de uma era *
* Resenha publicada no Jornal do Brasil, dia 25/06/2011
No início de Suicídios exemplares, “Viajar, perder países” (título tomado de empréstimo a Fernando Pessoa), o romancista catalão Enrique Vila-Matas apresenta imagens que servem como referências ao seu processo ficcional: o autor como vagabundo, a escrita como inscrição urbana (grafite), a viagem como metáfora textual e suas ramificações – mapas, caminhos, perdas e labirintos, a leitura como injeção subjetiva de imaginária viagem do leitor no trajeto sempre em fuga do texto.
Também em seu último romance lançado pela Cosac Naify entre nós, Dublinesca, o narrador atribui ao protagonista, na parte inicial, uma teoria do romance em torno de cinco pontos: “intertextualidade; conexões com a alta poesia; consciência de uma paisagem moral em ruínas; ligeira superioridade do estilo sobre a trama; a escrita vista como um relógio que avança”. Se a teoria logo é abandonada pelo personagem ao lembrar-se de reflexão pessoana sobre o sagrado instinto de não seguir nenhuma teoria e pela comemoração da morte de todas as teorias (inclusive a dele), não deixa de constituir-se em referência essencial à compreensão do processo narrativo de Dublinesca.
O fato de os cinco pontos do romance do futuro terem sido formulados a partir da leitura de uma obra tida como ultrapassada, Le Rivage des Syrtes, de Julien Gracq, permite considerar o último livro de Vila-Matas uma inscrição na móvel fronteira entre mundos próximos e distintos, cujas formas, no entanto, convivem não só lado a lado, mas por vezes são desdobramentos de formas anteriores. O arcaico e o moderno, desse modo, não operam ruptura, mas surgem e sucumbem em fluxo. O mundo em que se vive é sempre o final, essa é a sensação cíclica de sucessivas gerações frente ao acúmulo de ruínas do passado e à angústia do que virá.
Ninguém vive com mais intensidade a crise de um mundo em extinção do que o protagonista do romance – Samuel Riba –, de personalidade romântica, irônica e nostálgica, que se considera o último editor de textos literários e vive imerso numa atmosfera de desencanto. Em meio à depressão motivada por três fatores importantes – o fim de suas atividades profissionais, causado pelo esvaziamento da alta literatura, substituída por uma enxurrada mercadológica de narrativas góticas; o progressivo distanciamento da esposa transformada em budista; e o afastamento dos pais –, resolve empreender o que denomina o “salto inglês”, ou seja, uma viagem ao universo anglo-saxão, representado por Ulisses, de James Joyce, livro-espelho de Dublinesca. Neste, Vila-Matas, sem remeter à linguagem e à técnica joyceanas, reensaia cenas do autor de Dublinenses.
Riba, com a “tendência de ler a vida como um texto literário”, consegue convencer alguns amigos a participarem de uma viagem a Dublin a fim de celebrarem o funeral da era da imprensa, numa paródia ao enterro do proletário alcoólatra Paddy Dignam, descrito no sexto capítulo de Ulisses. Em Dublin, reproduzem a dança dos personagens joyceanos pelas ruas da cidade num cortejo-homenagem impregnado de fantasmas.
O título do romance, inspirado no poema “Dublinesque”, de Philip Larkin, e o tema significam um desvio no percurso francófilo do autor, num jogo de máscaras com o narrador e o protagonista. O poema de Larkin trata do enterro de uma velha prostituta dublinense acompanhado apenas por algumas colegas de ofício. Assim, Riba e seus amigos, em Dublinesca, participam tanto das pompas fúnebres da literatura (a puta decadente do poema) em pleno bloomsday (dia 16 de junho, data da jornada de Leopold Bloom, comemorado mundialmente em homenagem a Joyce) realizado em Dublin, quanto da celebração do romance que assinalou o auge da época que se encerra.
O desaparecimento daquilo que é vital à existência humana reduz o mundo a um grau insuportável de inabitabilidade. Esse sentimento ecoa na declaração de total dependência de Riba, ex-alcoólatra, à literatura: “o mundo fica muito chato ou, o que dá no mesmo, o que acontece nele carece de interesse se não for contado por um bom escritor”. Hikikomori, palavra japonesa que significa isolamento, usada para nomear autistas informáticos, imersos em completo retraimento social, é a maior ameaça ao ex-editor. É para escapar ao deserto e fugir ao apagamento de sua identidade que Riba promove a viagem a Dublin.
O centro de gravidade da obra é justamente o desaparecimento de uma época e o surgimento de outra. A ação narrativa gira em torno do funeral da era Gutemberg, do eclipse da arte literária e da ascensão da era digital. O mundo que evanesce, contudo, não provoca traumas, rupturas, apenas desencanto e nostalgia, perpassadas por uma crítica irônica à permanência de fantasmas no rastro do desaparecimento. Uma chuva contínua metaforiza a dissolução do mundo de Riba: “Chove sempre na alta fantasia, dizia Dante”. A chuva marca o apagamento de sua identidade e a sua consequente transformação naquilo que Stephen Dedalus, em Ulisses, denomina fantasma: “Um homem que desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de costumes”.
Escrito num tom elegíaco, Dublinesca tematiza a iminência do fim com recursos paródicos: “no nosso tempo o apocalíptico só pode ser tratado como paródia”. A equivalência entre personagens comprova o teor dessa citação: Riba e os companheiros de percurso, Javier, Ricardo e Nietzky, parecem réplicas vivas de Bloom, Simon Dedalus, Martin Cunningham e John Power, os personagens originais do cortejo fúnebre de 1904.
A exemplo de seus livros anteriores, Vila-Matas, entre Borges e Bolaño, insere uma rede extensa de citações tomadas à literatura, ao cinema e à cultura pop, com a diferença de que essa biblioteca pessoal incorporada à narrativa assume agora claramente a forma de dissolução, de despojos lançados como fragmentos nos quais a era que se vai luta pela sobrevivência do vigor de sua plenitude.
A obra de Vila-Matas guarda a propriedade do ensaísmo no interior do texto ficcional, mistura realidade e ficção, mobiliza uma biblioteca viva ao valorizar a dimensão intertextual, borgeanamente inventa autores e referências, desarma o tom grave e solene com o uso do modo irônico e do cômico. Haverá um enriquecimento na injeção do sangue do ensaísmo na ficção literária? O que se ganha e o que se perde? A validade de qualquer recurso está condicionada à manutenção em alto grau da poiesis, da invenção, do próprio da arte, ou seja, incorporar a pulsação do ensaio enriquece uma obra desde que não promova o seu enrijecimento, a montagem de um molde narrativo a ser sucessivamente preenchido por novas camadas do mesmo. Esse risco felizmente não ameaça Enrique Vila-Matas, um especialista em driblar com a linguagem os acenos da morte.
Dublinesca é um romance com as obsessões já conhecidas pela legião de admiradores do autor: a ligação entre a vida e a literatura; a insatisfação que leva os personagens a assumirem identidades diferentes; o isolamento e o fim irremediável da condição humana; a ironia desnudadora de limites e aparências; a potência da negatividade na gênese da literatura; o ensaísmo ficcionalizado; a metalinguagem; a incorporação de uma biblioteca pessoal na construção da narrativa; a tentativa de apreensão daquilo que escapa, desaparece ou morre. De quebra, oferece o mais humano dos seus personagem e um nível de realização igual ou superior ao de Bartleby e companhia e de Doutor Pasavento.
Para o ex-editor decepcionado por nunca ter encontrado e publicado as obras de um gênio, capaz de ajudá-lo a descortinar um mundo novo, restará, mesmo no fim de tudo, a frase de Joyce no sexto capítulo de Ulisses: “Sempre aparece alguém que nunca se espera”.
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