Pular para o conteúdo principal

Derrida, um egípcio, Peter Sloterdijk

Cinzas e pirâmides *



*Resenha publicada no Caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 13/02/2010



O filósofo alemão Peter Sloterdijk, autor de A crítica da razão cínica, sua obra mais importante, lançada em 1983, mas ainda sem tradução entre nós, e de Regras para o Parque Humano, cujas formulações levaram a uma viva polêmica com Jürgen Habermas, desenvolve, em Derrida, um egípcio – o problema da pirâmide judia, uma série de reflexões que se constituem em um autêntico diálogo entre as ideias de Jacques Derrida (1930-2004), o teórico da desconstrução, e o pensamento de alguns autores de importância desigual. Felizmente a morte do filósofo franco-argelino não vira ocasião para produção de texto laudatório nem para a sua monumentalização. A homenagem prestada vale pela proposição instigante que produz.

Entre a perda e a preservação, Sloterdijk opta por uma leitura dessingularizadora, cujas conexões proporcionam um distanciamento necessário da irradiação sedutora de Derrida. O recorte transdisciplinar permite o estabelecimento de aproximações entre o caráter aberto e multifacetado da obra derridiana e sete autores de campos diversos, como Niklas Luhmann, Freud, Thomas Mann, Franz Borkenau, Régis Debray, Hegel e Boris Groys. A lamentar, a ausência de Marx e Platão.

O autor atribui a potência da desconstrução ao fato de ter se revelado “a derradeira oportunidade para uma teoria integrar por meio da desintegração”. Recorre ainda à referência de Luhmann à desconstrução, cuja perspectiva pressuporia a “catástrofe da modernidade”, concebida como mudança da forma de estabilidade da sociedade tradicional, centralizada e hierarquizada, para a forma de estabilidade da sociedade moderna, diferenciada e multifocal. Sloterdijk defende a desconstrução como uma forma de teoria aberta a um futuro e dotada de transmissibilidade, de natureza autoaplicada, inscrita em um movimento que sempre a consolida e regenera. Razão pela qual termina o capítulo com uma indagação paradoxal: “Será possível que a desconstrução, em consonância com seu impulso central, desenvolvesse um projeto de construção que visasse produzir uma máquina de sobrevivência indesconstrutível?”

É num clima de rêverie que surgem as referências a Moisés e o monoteísmo, texto do Freud tardio. Neste livro, na primeira parte, intitulada “Moisés, um egípcio”, o criador da psicanálise afirma que “Moisés, o libertador, o legislador e o pregador do povo judaico, não era judeu, mas egípcio”. Sloterdijk lê na interpretação freudiana um prelúdio da différance, tomando por base o conceito de deslocamento ou deformação usado por Freud, lido tanto como acontecimento quanto redação do acontecimento, relato no qual o que aconteceu tornar-se-ia irreconhecível. Moisés é aquele que rouba aos egípcios a identidade para legá-la aos judeus, processo que transforma o mito do êxodo não numa “secessão do judaísmo em relação ao poder egípcio estrangeiro, mas a realização do egipcismo mais radical por meios judaicos”. Moisés, portanto, origina o ato de transporte de uma cultura perdida e de uma identidade que será sempre retorno ao lugar vazio de sua gestação. O êxodo marca a estrangeiridade como um sinal gravado em um corpo que se constitui como abandono e presença do que não pode ser recuperado.

Valendo-se da semelhança em alemão entre as palavras sinal e signo (ambas Zeichen), Sloterdkijk sugere que Thomas Mann, no romance José e seus irmãos teria realizado uma profecia involuntária sobre Derrida, já que o sucesso de José também deve ser atribuído ao extraordinário domínio da arte de ler sinais desconhecidos pelos egípcios. Com isso, o autor considera a desconstrução como uma terceira onda de interpretação dos sonhos, capaz de ultrapassar os modelos da psicanálise e da hermenêutica messiânica, o que acontece “na forma de uma semiologia radical, trazendo a prova de que os signos do Ser jamais propiciam a plenitude de sentido que prometem – outra maneira de dizer que o Ser não é um verdadeiro remetente e que o sujeito não pode ser um lugar de colecionamento perfeito”. Se egípcio é o predicado de todas as construções que podem ser submetidas à desconstrução, Derrida torna-se o alvo.

A aproximação da obra de Derrida às teses de Franz Borkenau (1900-1957) sobre a atitude das civilizações em relação à morte possibilita a Sloterdijk, mediante a apropriação do conceito de “antinomia da morte” do pensador austríaco, conceber a desconstrução como “um ato resultante da mais radical secularização semântica – constituindo-se no materialismo semiológico em ação. Poder-se-ia descrever o procedimento desconstrutor como um manual de instruções, a fim de permitir a transmissão das igrejas e castelos do ancien régime metafísico e imortalista para as mãos dos mortais civis”.

Régis Debray auxilia na recontextualização midialógica de Derrida. A biografia e o trajeto do Deus do monoteísmo só foram possíveis graças ao seu exílio, à fuga do lugar de sua invenção e pelo fato de ser dotado de formas de transportabilidade e transmissibilidade, o que implicou a escolha de meios. Deus passou da mídia da pedra para a do pergaminho, ou como afirma Debray: “De repente, o divino muda de mãos: dos arquitetos, passa para os arquivistas. De monumento, torna-se documento”.

É o texto “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel”, inserido em Margens da filosofia, a verdadeira fonte das reflexões de Sloterdijk. O autor sustenta a força da leitura no centro do pensamento de Derrida, marcado pela propriedade da filosofia nos tempos atuais: tornar-se uma observação de observações, um texto de segunda ordem, mecanismo de compensação à desvantagem da chegada tardia ao mundo em que o essencial já foi feito. Se Hegel considera a pirâmide o signo de todos os signos, Derrida entende que a única maneira de desconstruí-la é perseguir todo o trajeto da sua transformação em escrita, até remontar ao poço original que a engendrou, algo que transparece em sua afirmação “O tempo do signo é então tempo do retorno”.

Via Boris Groys as cinzas de Jacques Derrida são lançadas nos arquivos da cultura humana, na rede onde se aliam o finito e o infinito. Os arquivos reproduzem as câmaras funerárias das pirâmides, arquétipos do espaço morto que podem ser levados e reinstalados em qualquer lugar para onde caminhamos todos nós, derridianos ou não. Como senha de acesso a eles, a frase de Derrida sempre nos lembrará de que: “A linguagem se cria e cria mundos”.



**********


Derrida, um egípcio
Peter Sloterdijk
Trad. Evando Nascimento
Estação Liberdade



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Contos d’escárnio. Textos grotescos, Hilda Hilst

Hilst: exílio da oikos * Contos d’escárnio. Textos grotescos  é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos , de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme . As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem cé...

Os moedeiros falsos, André Gide

                                        A escrita em abismo de André Gide * * Resenha publicada no Caderno  Ideias & Livros , do Jornal do Brasil, em 30/01/2010 O relançamento de  Os moedeiros falsos , de André Gide (1869-1951) vem preencher um vazio de quase duas décadas de ausência dos livros do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1947 entre nós. Juntamente com o texto assumido pelo próprio autor como seu único romance, a editora Estação Liberdade lançou o  Diário dos Moedeiros   Falsos , até então inédito no Brasil. Parece haver uma renovação do interesse pela obra do autor de  A Sinfonia Pastoral . A mesma editora publicou uma nova tradução de  Os  Subterrâneos do Vaticano , além de promover a primeira edição do conto  Pombo-torcaz , escrito em 1907, porém só publicado em 2002. Na França, no ano passado, a coleçã...

Galáxias, Haroldo de Campos

Galáxias ; uma escrita babelbarroca *  1. Introdução João Alexandre Barbosa, ao discorrer sobre o poema moderno, observou que este apresenta dois níveis de leitura: “aquele que aponta para uma nomeação da realidade em seus limites de intangibilidade, operando por refrações múltiplas de significado, e aquele que, ultrapassando tais limites, refaz o périplo da própria nomeação, obrigando a linguagem a exibir as marcas de sua trajetória”. [1] Evidentemente, a segunda hipótese ajusta-se à estrutura de Galáxias, de Haroldo de Campos, objeto de nossa investigação, cuja construção/desconstrução revela o tempo como o único traçado visível, fio condutor da viagem cuja existência deve-se, no entanto, à fala que o diz. A linguagem molda um balé de saltos e rupturas, orquestrando as mil vozes do discurso numa polifonia de estilhaçamento de vida e linguagem, mergulho radicaos instaurado por uma poiésis lábil em incessante irrupção de significantes. A prosa haroldiana, pulveriza...