
O último Calvino *
* Resenha publicada no caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 14/08/2010.
Coleção de areia,
último livro publicado por Ítalo Calvino, registra “a necessidade de
transformar o escorrer da própria existência numa série de objetos salvos da
dispersão, ou numa série de linhas escritas, cristalizadas fora do fluxo
contínuo do pensamento”.
Ao
explorar a diversidade temática numa sucessão de micronarrativas, o autor se
expôs ao risco de criar um conjunto cuja força da deriva poderia produzir uma
gangorra qualitativa, porém, graças à leveza e à argúcia de um olhar disposto a
captar a luz dos acontecimentos a partir de um ângulo extremamente original, o
leitor não sente os desníveis, aprisionado a um leve sopro de palavras capaz de
limpar seres, objetos e lugares da camada de invisibilidade e indiferença sob a
qual permanecem intocados.
“Exposições.
Explorações”, a parte inicial do livro, assemelha-se a uma galeria
textual em que o leitor pode explorar uma exposição de curiosidades em dez
seções de natureza diversa. Nela encontrará a coleção de areia que serve de
título, imagens do Novo Mundo, mapas, museu de cera, estudos etnográficos
franceses, objetos com inscrições cuneiformes e hieróglifos, crônicas de fatos
escabrosos, quadros de Delacroix, uma insólita mostra de nós usados em arte e
desenhos de autores franceses do século XIX.
Uma bela homenagem a Roland Barthes abre a segunda parte, “O Raio do Olhar”. A ela são justapostos relatos sobre o Forte de Belvedere, em Florença, a pocilga de Settefinestre, uma descrição minuciosa da narrativa inscrita na Coluna de Trajano, um estudo sobre epígrafes e grafites, reflexões em torno dos livros O imaginário urbano na Itália Medieval, de Jacques Le Goff, e da Antologia Pessoal, de Mario Praz, e um texto referente ao funcionamento dos olhos.
Na terceira parte, dominada por narrativas alusivas ao fantástico, o autor cria uma espécie de galeria aérea de fenômenos sensíveis. Em texto de 1980, evoca Baudelaire e Kleist para auxiliá-lo no desvendamento do significado de autômatos construídos por relojoeiros suíços, obras situadas nas fronteiras entre brinquedo, jogo e simulacro. A leveza dispersiva do autor nos leva a uma geografia das fadas, desenhada por Robert Kirk, em O reino secreto, para em seguida nos conduzir ao Dicionário de lugares imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, numa íntima conexão com o mapeamento poético de mundos imaginários em contínua mobilidade, proposição de Calvino em As cidades invisíveis. Se os comentários a respeito da arte filatélica de Donald Evans pouco acrescentam à obra, o autor recupera o fôlego e o refinamento na rica indagação metalinguística contida nas notas ao texto de Luigi Serafini, Codex Seraphinianus, sobre o qual Calvino nos diz: “se a escrita serafiniana tem o poder de evocar um mundo em que a sintaxe das coisas se embaralha, por outro lado deve conter, oculto sob o mistério de sua superfície indecifrável, um mistério ainda mais profundo, que diz respeito à lógica da linguagem e do pensamento”. Borgeanamente, escrever é colocar a palavra como fonte de visões do invisível.
Termina
o livro de Calvino com alguns apontamentos sobre uma jornada a três países. Dos
nove textos sobre o Japão, o primeiro traça uma síntese do movimento de captura
da essência dos lugares estranhos ao autor. Foge ao exotismo e ao puro
descritivismo ao promover um olhar em fuga do turismo cultural, antes
dedicando-se à captura do traço essencial cujo vislumbre pode iluminar a
dimensão desconhecida do Outro. O Japão flagrado por Calvino está nos
monumentos históricos de castelos e ruínas, em jardins cujo ordenamento revela
toda uma concepção do mundo, mas está também nas dissimetrias entre o passado
ritualístico e a modernidade (duvidosa, é certo, no caso dos fliperamas). A
tradição e a contemporaneidade nipônica são flagradas no texto inicial: “A
velha senhora de quimono violeta”. A senhora do título corresponde à
permanência dos valores clássicos, a jovem que a acompanha representa a mudança
sem solução de continuidade; o diálogo entre ambas é o código de convivência
entre temporalidades distintas.
O México apresentado por Calvino é um território mítico, terra de maravilhas, um verdadeiro Novo Mundo, porém sem brilho e vigor. A viagem parece feita ao passado enquanto rasura. Infelizmente árvore e floresta esvaziaram-se como referenciais simbólicos da realidade americana.
Termina
o livro com três relatos surpreendentes sobre o Irã. A parede nua no interior
de um arco ogival de um mihrab funciona como uma lente pela qual
jorram imagens imemoriais de conhecimento e fantasia. As orientais paisagens do
silêncio levam Calvino a aproximá-las da arte: “a ideia de perfeição que a arte
persegue, a sabedoria acumulada na escritura, o sonho de contentamento de
todo desejo que se exprime no esplendor dos ornatos, tudo remete a um só
significado, celebra um só princípio e fundamento, implica um objeto único e
último. Um objeto que não existe. E sua exclusiva qualidade é não existir. Não
se pode nem mesmo lhe dar um nome”.
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