Cidade iluminista, modernidade e
modernismo *
Há uma tendência a se pensar numa relação homológica entre projeto urbano e
concepção do mundo. No traçado das cidades estariam desenhadas as ideias que
sustentaram determinadas épocas. O espaço reservado à catedral na Idade Média,
o centro ocupado pelo palácio do soberano no plano radiocêntrico da cidade
barroca, moldado por projetistas do absolutismo político, o núcleo no qual se
erige a sede do governo ou a fortaleza, poderiam justificar essa ideia.
Contudo, a observação atenta à evolução urbana compromete tal condicionamento
automático, revelando a fragilidade de seus pressupostos.
O nexo entre cidade e concepção de mundo deve ser buscado, segundo a ótica de Sérgio Paulo Rouanet, "numa instância intermediária que guarde com a concepção de mundo uma relação de correspondência, mas não se confunda com ela" (1) , com isso a complexidade do planejamento urbano fica protegida da rigidez e do dogmatismo com os quais as visões de mundo normalmente constroem um conceito de verdade.
Essa instância intermediária é explicitada pelo autor:
Penso num elenco
de princípios diretores, que constituam, por assim dizer, uma
"tradução" para o universo do urbanismo da ideia iluminista. Se eles
existissem, o urbanista poderia conciliar sua fidelidade a certos valores com
uma considerável liberdade de criação. Reconhecendo a validade de tais
princípios, cujo caráter é basicamente formal, não se sentiria obrigado a
transformar os conteúdos de sua concepção do mundo em estruturas urbanas. Sob a
condição única de que os princípios fossem respeitados, ele estaria livre para
criar de acordo com seu próprio estilo e com as linguagens estéticas do seu
tempo. Essas linguagens mudam, e, desse modo, os mesmos princípios poderiam
atualizar-se em realizações urbanísticas que variassem de época para época. (2)
]
Desse modo, o urbanista pode fugir a qualquer tentativa de dirigismo e sustentar um mínimo de autonomia em sua prática. Aliás, a noção de autonomia, em todas as suas articulações, é nuclear à leitura que Rouanet faz do Iluminismo, vendo nele a persistência de vigor crítico. A Ilustração, configuração empírica do Iluminismo (entendido como a filosofia propriamente dita), foi fundamental para a construção da modernidade, alimentando o liberalismo, com os conceitos de liberdade e democracia, o socialismo, ao aguçar as tendências igualitárias e libertárias, e os movimentos ecológicos, originados do culto à natureza.
Na segunda parte do ensaio, Rouanet faz uma análise do verbete "cidade", contido no texto fundamental da Ilustração, a Encyclopédie, de Diderot e d'Alembert. A partir dele, levanta os fundamentos da reflexão urbanística da Ilustração, constituídos, na verdade, por quatro relações polares. A primeira antinomia abrange a relação abertura/clausura, isto é, entre os limites da cidade e aqueles territórios além deles, oposição ainda constitutiva dos projetos contemporâneos, mesmo naqueles em que se transformou em tensão entre centro e periferia urbanos graças não apenas à expansão territorial, mas ao processo de compressão do tempo-espaço (3). A segunda polaridade é a da relação entre o plano individual e o coletivo, responsável pelos direitos à individualidade e à ação coletiva, sempre assumindo novas formas frente às tentativas de manipulação e controle de ambos. A terceira contrapõe o estético ao utilitário, tocando nas questões pertinentes à função e à finalidade do ambiente urbano. Finalmente, a quarta relação envolve a tensão entre o novo e o antigo, polaridade praticamente presente em todos os momentos históricos. São essas polaridades que, de acordo com a versão de Rouanet, se transformam em normas de ação urbanística.
O núcleo normativo, constituído pelos princípios diretores do planejamento urbano, funciona como intermediação entre a ideia do Iluminismo e a materialidade urbana. O autor de O mal estar da modernidade denomina-o civitas, ao passo que a cidade real projetada pelo urbanista ou na qual ele intervém é designada como urbs. A observância à estrutura triangular dessa concepção permite ao autor propor um modelo de equilíbrio e racionalidade, capaz de neutralizar as tensões advindas das polaridades urbanas, no qual não se legisla a partir de uma ideologia, pois a civitas é expressão de autonomia e liberdade.
Dentro desse
espaço, os urbanistas são soberanos. Podem ser modernos ou pós-modernos,
funcionalistas ou historicistas, podem construir cidades em forma de tabuleiro,
como Nova York; ou de leque, como Karlsruhe. Podem realizar cidades da
Renascença, em forma de caracol, como Giorgio Marini; ou de espiral, como
Filatere. Podem usar os materiais que bem entenderem: barro, vidro, alumínio.
Mas não podem ignorar a civitas, pois
é a observância das normas imanentes às diversas polaridades que define a
cidade iluminista. (4)
Como se vê, obtém-se um modelo praticamente universal e trans-histórico a presidir a proliferação e a expansão das cidades. Por isso, o autor termina o ensaio fundando uma cidade volitiva, irreconhecível fora do modelo idealizante no qual foi criada. De acordo com tal visão, a cidade iluminista é aberta, porosa, hospitaleira ao Outro, capaz de absorver a diferença, mantenedora do contraste entre a vida urbana e a natureza, inconciliável com as cidades-jardins, inimiga da ideologia antiurbana, intolerante com a miséria, com a exploração social, com a violência, com a poluição, além de ser bela e funcional. A questão não é que tais características não existam ou sejam falsas, porém não dão conta da cidade, sequer como representação abstrata das urbes.
Se o Iluminismo pode ser concebido como a infância da modernidade, seguramente legou-lhe modelos de planejamento, mais ainda: um modelo de olhar. O Renascimento operou uma gigantesca modificação das visões do tempo e do espaço, uma ampliação dos horizontes humanos que reduziu o planeta a sua dimensão finita, desabilitando antigas concepções mitológicas e teológicas. Todos os territórios, mesmo aqueles ainda não incorporados, tornaram-se vulneráveis. Além das modificações trazidas ao olhar por essa remodelação da paisagem, a fixação das regras fundamentais da perspectiva permitiu moldar as formas de ver. A reprodução fria, geométrica, sistemática, racionalista e a percepção em ótica infinita da dimensão finita constroem um sistema de representações (artísticas, econômicas, legais, políticas, psicológicas etc.) cujas linhas atravessam o percurso da modernidade e não desaparecem totalmente na pós-modernidade.
É a esse movimento de construção e representação sob controle, a esse processo de manipulação de elementos diversos para a obtenção de uma finalidade emancipadora que as vanguardas modernistas se ligaram, seja mediante a reconcepção das ideias iluministas, seja através de um movimento de profunda negação.
A observação de David Harvey sobre os limites da atuação iluminista ajuda a corroborar tal raciocínio.
Os pensadores
iluministas também queriam dominar o futuro por meio de poderes de previsão
científica, da engenharia social e do planejamento racional e da
institucionalização de sistemas racionais de regulação e controle social. Eles
na verdade se apropriaram das concepções renascentistas de espaço e de tempo,
levando-as ao seu limite, na busca da construção de uma sociedade nova, mais
democrática, mais saudável e mais afluente. Na visão iluminista de como o mundo
deveria ser organizado, mapas e cronômetros precisos constituíram instrumentos
essenciais. (5)
Levando em consideração a linha de continuidade entre Iluminismo e vanguardas, os projetos de Le Corbusier podem ser compreendidos como constituídos por uma radicalização da perspectiva de uma razão ordenadora, que instrumentaliza tempo e espaço, subordinando-os à lógica da acumulação capitalista.
E passo a passo,
depois de se ter produzido nas fábricas tantos canhões, aviões, caminhões,
vagões, dizemo-nos: Não se poderia fabricar casa? Eis aí um estado de espírito
completamente atual. Nada está pronto, porém tudo pode ser feito. Nos próximos
vinte anos a indústria terá agrupado os materiais fixos, semelhantes àqueles da
metalurgia; a técnica terá levado bem além daquilo que conhecemos a calefação,
a iluminação e os modos de estrutura racional. As construções não serão
eclosões esporádicas em que todos os problemas se complicam ao se acumular; a
organização financeira e social resolverá, com poderosos e acertados métodos, o
problema da habitação, e as construções serão imensas, geridas e exploradas
como administrações. Os loteamentos urbanos e suburbanos serão vastos e
ortogonais e não mais desesperadamente disformes; permitirão o emprego do
elemento de série e a industrialização da construção. Cessaremos talvez enfim
de construir 'sob medidas’. A fatal evolução social terá transformado as
relações entre locatários e proprietários, terá modificado as concepções da
habitação e as cidades serão ordenadas em lugar de serem caóticas. A casa não
será mais essa coisa espessa que pretende desafiar os séculos e que é o objeto
opulento através do qual se manifesta a riqueza. Ela será um instrumento, da
mesma forma que o é o automóvel. A casa não será mais uma entidade arcaica,
pesadamente enraizada no solo pelas profundas fundações, construída em 'duro',
e à devoção da qual se instaurou desde muito tempo o culto da família, da raça
etc. (6)
A longa citação serve para demonstrar a crença depositada na produção de novas tecnologias e na organização do capital como fatores decisivos para a eliminação do caos urbano, ao qual, numa concepção evolutiva, sucederá o princípio da ordem representado por um planejamento científico e estético.
A poética de Cacaso surge na contramão de um projeto iluminista esvaziado de suas formulações originais, apropriado e deformado por um processo cuja razão cedeu a primazia à lógica brutal da acumulação e cuja autonomia passou a ser vista como possibilidade de fuga ao planejamento central.
Tanto Cacaso quanto Oswald de Andrade se aproximam em relação à construção de uma obra cuja legibilidade é assegurada por estarem inscritas nos limites dos sulcos que delimitam o território urbano.
Marshal Berman, em seu estudo sobre a modernidade baseado numa reinterpretação de Marx, aponta para um senso de totalidade entre vida e experiência, englobando polaridades diferentes das apontadas por Rouanet, mas fundamentais à legibilidade do mundo, como política e psicologia, indústria e espiritualidade, classes dominantes e classes operárias, A partir de uma concepção da vida moderna como um processo dotado de coerência, o autor critica o entendimento de uma visão dual sobre a modernidade: "O pensamento atual sobre a modernidade se divide em dois compartimentos distintos, hermeticamente lacrados um em relação ao outro: 'modernização' em economia e política, 'modernismo' em arte, cultura, sensibilidade." (7)
Mais à frente, o autor volta a estabelecer uma distinção entre modernismo e modernização:
Nossa visão da
vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual:
algumas pessoas se dedicam ao 'modernismo', encarado como uma espécie de puro
espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais
autônomos; outras se situam na órbita da 'modernização', um complexo de estruturas
e processos materiais − políticos, econômicos, sociais − que, em princípio, uma
vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma
interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na
cultura contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes
da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a
interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (8)
O modernismo sempre reivindicou sua filiação a um processo de modernização da cultura brasileira, uma "atualização" cuja referência era toda eurocêntrica. Tal ação correspondia, destarte, à valorização de um dos princípios da quarta polaridade apontada por Rouanet: o novo. Quebrar velhas estruturas, romper os códigos literários vigentes, superar o declamatório, o discursivo, o retórico e as formas evanescentes herdadas do século XIX significava operar uma verdadeira revolução similar ao empreendimento remodelador das cidades, ao processo de atualização de nossos centros urbanos, modernizados de acordo com modelos fornecidos pelos países mais avançados. Esse gesto inovador no plano urbano ficou conhecido com a designação de "melhoramento". Sua expressão maior está representada nas alterações promovidas pela reforma efetuada pelo prefeito Pereira Passos na fisionomia do Rio de Janeiro, cujo novo traçado não apenas atualiza, apresenta nova conformação, novos projetos, como também busca desvencilhar-se da memória, ao mesmo tempo em que desloca os grupos indesejáveis de um centro transformado em vitrina e palco do progresso, em conformidade com o figurino estabelecido pela proposta criada pelo Barão Haussmann para Paris na segunda metade do século XIX. Esse "melhoramento" produz tanto resultados positivos quanto negativos, desenhando-se, portanto, como uma forma híbrida: se o racionalismo urbano estetizado dessa transformação traz o progresso, gera, simultaneamente, a favela.
A razão iluminista não é a Razão, os imperativos categóricos são tão flutuantes quanto qualquer formulação teórica. Sua constituição e emprego corresponde a uma representação dos interesses de determinada classe. A sobredeterminação do novo é a ampliação da mercadoria, estendendo a sua natureza aos atos e movimentos culturais. Esse novo passa a ser usufruído por aqueles capazes de reconhecer o seu valor de mercadoria. Nesse sentido, a modernização no Brasil, em quase todos os seus atos, surge como resultado da ação de uma elite colonial num processo de identificação que tenta criar instrumentos para igualar-se aos centros mais avançados. Os movimentos literários, a luta contra a insalubridade e pelo saneamento das cidades, o planejamento urbano, o processo de industrialização, portanto, apontam para espaços nos quais as classes populares nunca tiveram poder decisório, embora sempre apareçam como alvo, público, vítima ou como habitantes invisíveis.
Na verdade, a modernização com embelezamento proposto nas décadas iniciais do século passado tem seus desdobramentos na política desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek e chega às décadas de atuação de Cacaso sob a forma de um projeto de construção nacional megalomaníaco, fruto da associação entre oclusão política, vontade imperial, tecnocracia, radicalismo ideológico, financiamento externo e racionalismo normativo. Ou seja, o modelo de cidade iluminista proposto por Rouanet abriga a Reforma Pereira Passos, os projetos de Le Corbusier (9), cujo maior desdobramento é Brasília, cidade-símbolo do planejamento como utopia racionalista, e os planos engendrados pelos projetistas do Brasil Grande: Transamazônica, Itaipu, usina nuclear e as milhares de unidades financiadas pelo BNH país afora, dentre outros projetos arquitetônicos.
NOTAS
(1)
ROUANET, Sérgio Paulo. A cidade iluminista. In: Memória, cidade e cultura.
Coord. Cléia Schiavo e Jayme Zettel. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997, p. 3.
(2) Idem.
(3)
Cf. HARLEY, David. Especialmente toda a Parte III - "A experiência do
espaço e do tempo", p. 184-289. In: A condição pós-moderna: uma pesquisa
sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria
Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993.
(4)
ROUANET, op. cit., p.10-11.
(5)
HARVEY, op. cit., p. 227.
(6)
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. Trad. Ubirajara Rebouças. 6a. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2002. p. 166.
(7)
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986, p. 87.
(8) Ibid.,
p. 129.
(9)
As idéías de Le Corbusier influenciaram nossos urbanistas. Conforme assinala
LEME,Maria Cristina da Silva Leme. "Urbanismo: a formação de um
conhecimento e de uma atuação profissional". In: Palavras da cidade. Org.
Maria Stella Bresciani. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 90.
"A passagem de Le Corbusier por São Paulo e Rio de Janeiro em 1929 e o
retorno em 1936 são responsáveis pela difusão deste movimento no Brasil. Ele
profere duas conferências no Rio: a primeira sobre arquitetura - Revolução
Arquitetural - e a segunda sobre Urbanismo. Estes dois temas estão
estreitamente articulados em sua fala - a cidade e a arquitetura moderna."
*
Artigo publicado na Revista Zunái (http://www.revistazunai.com.br/)
- edição de setembro/2007.
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