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Cacaso: uma poética urbana




CACASO: uma poética urbana *

Uma cidade apresenta múltiplas imagens. Há sempre uma projetada para ser percebida a distância, dando-lhe reconhecimento externo, transformando-se em espécie de retrato oficial capaz tanto de identificá-la quanto de falsificá-la. Outras só podem ser construídas com a inserção do indivíduo em seu interior, sofrendo a angústia das ruas que a compõem. Essas imagens parciais jamais poderão ser reunidas, porque a soma não produz significado. Nada é fixo, nada pode ser imobilizado, mesmo o concreto das construções e o asfalto das ruas mudam a consistência, a direção e a forma. Ainda que as ruas permaneçam ruínas históricas sob o chão de novos traçados, o habitante da cidade vive um paradoxo: está ancorado na mobilidade.

A velocidade das mudanças e a contínua circulação de informações em nível extraordinariamente superior ao da capacidade de assimilação poderiam tornar a cidade um ambiente inabitável, não houvesse um mapa e instruções de uso em cada consciência, ajudando-a a selecionar os caminhos e os signos capazes de movê-la.

A cidade tornou-se o lugar de todos os acontecimentos:

Acontecimento artificial, portanto, ou, mais exatamente, acontecimento urbano porque, onde quer que se produza, se produzirá sempre na cidade. Há apenas uma alternativa: ou será um acontecimento qualquer que não se poderá distinguir dos outros, infinitos, que ocorrem na cidade e que será imediatamente absorvido, assimilado e esquecido no ambiente opressivo e repressivo da cidade moderna, ou será um acontecimento diferente, um acontecimento interpretável. E, como é interpretável por excelência o acontecimento histórico, eis que qualquer acontecimento interpretável, qualquer acontecimento que não se preste a ser recebido passivamente, qualquer notícia que não seja aceita estupidamente, assim como é transmitida pelas estações de rádio ou pelos canais de televisão, encerra em si uma virtualidade, a candidatura a ser um acontecimento histórico. (ARGAN, 1995, p. 222)



A poesia inscreve-se como um acontecimento que busca ser reconhecido, tornar-se visível e interpretável. Constitui-se, portanto, em um acontecimento histórico, sua linguagem carrega as marcas temporais.

Dois poemas de Cacaso podem ilustrar com exatidão esse movimento de inscrição da poesia como signo urbano, transformando-a em um acontecimento interpretável cuja visibilidade resulta da tensão entre poéticas em disputa territorial.

Logia e mitologia

Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí. (BRITO, 2002, p. 163)

Antes de encerrar-se na datação explicitada no segundo verso, o poema pode ser observado como um acontecimento histórico. O ano de sua concepção corresponde ao período de existência de um regime militar no Brasil, assinalado e combatido pelo autor. A tensão daquela época já pode ser observada no próprio título antitético: logia, radical grego presente em palavras correspondentes a saberes diversos, logos, razão, confrontado com mitologia, no qual entra como constituinte, mas do qual pode aparecer deslocado semanticamente se o termo for entendido como explicação para a existência de um modo anterior ao surgimento da filosofia e da ciência. Por qualquer leitura, contudo, a rima soa falsa; a assonância, dissonância, moradia em território hostil.

As metáforas zoomórficas presentes nos versos - morcegos, cabras, hienas, porco - servem como representação simbólica da opressão e do mal-estar na cidade, dominada totalmente pelos aparatos da repressão. A cidade, sob a ditadura, torna-se estigma. Todos os signos são suspeitos, toda palavra é culpada. A ideologia é a do domínio total. A vida pode ser planejada, fiscalizada, vigiada e punida. Não só as leis, os decretos-leis, os atos institucionais e toda a legislação enquadram os atos praticados na metrópole, mas também censores vasculham todas as esquinas à procura de sinais de subversão. Se as figuras da repressão à época podiam ser simplificadas no guarda, no militar e no censor, a evolução das cidades tornou-as ultrapassadas. O sistema repressivo transformou-se em um polvo, já não precisa de censores, substituídos por câmeras e tecnologias de segurança, uma vez que os programas de perpetuação do poder na cidade já vêm inscritos nas consciências.

À época em que o poema foi escrito a rede de agentes repressivos, habitantes de porões clandestinos, era vista apenas como uma parte maldita da cidade, em breve sujeita à extinção. Não havia a mais delirante possibilidade de se perceber a conexão profunda entre cúpula (área de planejamento e decisões) e porão. Não havia como suspeitar do remodelamento, do repaginamento do poder, da construção de um consórcio entre ciência, informação, capital e repressão de tal modo que a possibilidade de transformação fosse completamente negada. A mudança foi introduzida no sistema de dominação e só pode ocorrer de acordo com suas necessidades de progresso e manutenção. Logo, as cidades não somente tornaram-se uma única cidade real ou ideal, mas esta é a única formação possível, absoluta, uma realidade tecnológica, humana e metafísica. A pluralidade, ou melhor, o princípio da negação, a possibilidade de construir outros modelos, outras aventuras humanas, a polifonia só podem existir nos arquivos da modernidade, agora o consenso reduziu-se ao coral das vozes consentidas (é o triunfo do "coro dos contentes") . Um mundo virtual e midiático sobrepõe-se ao mundo dos eventos. Os fatos e os acontecimentos só podem existir como representação e os meios e modos de construir essas representações são privados, expropriados por representações fantasmagóricas, já que se tornaram insuficientes os conceitos de burguesia, governo, elite, capitalismo. Embora fundamentais para a legibilidade da cidade, já não conseguem dar-lhe visibilidade, não obtêm a mesma clareza, a mesma nitidez na descrição de seus contornos conseguida outrora. Por não existir alternativa, a cidade vive crescente angústia: ao centro de decisões opõe-se o caos, o rito sacrificial no qual a cidade perece, suas muralhas de indiferença e desprezo são arrasadas e aqueles que vivem nela a experiência de privação, prisão e exílio vingam-se furiosamente, uma vez que nenhum signo é, para a legião de párias urbanos, portador de qualquer significado.

Em "Logia e mitologia" a referência vai além dos militares: está endereçada a todos que deram sustentação ao regime. Os animais escolhidos são normalmente apreendidos como criaturas negativas. O inofensivo morcego é associado pelo imaginário popular a um ser maligno, vampiro, criatura cuja vida depende da desgraça e miséria humana. É, ainda, um animal de hábitos noturnos, simbolizando as trevas, a noite, o escuro atribuído ao regime militar. As cabras vêm adjetivadas explicitamente de modo negativo: malignas, referência à suposta natureza demoníaca atribuída a elas desde os gregos. As hienas possuem a característica de se alimentarem de carnes de animais mortos e putrefatos, cabe-lhes no poema o papel infame de seres infiltrados, natureza perversa e traiçoeira. A surrealista imagem "porco belicoso de radar" permite efetuar a leitura da forma verbal "sangra" de modo ativo, desfazendo a ambiguidade possível com a de animal imolado. O termo "belicoso" denota marcial, militar; leitura reforçada pelo substantivo "radar", último termo da expressão. Cabe, assim, ao porco a execução da sentença de morte, tarefa rotineira como pode ser deduzido da repetição do verso "e que sangra e ri".

A onipresença do domínio militar é expressa pela disposição de "centuriões sentinelas" em toda a extensão do território brasileiro: "do Oiapoque ao Chuí". Esse controle total da cidade significa um estado de servidão, uma noite que a voz estruturadora do poema concebe como "provisória".

Quando a vida amanhecer, haverá, então, a volta da liberdade, a voz poderá assumir a existência inicial, marcada pelo verso "Meu coração", metonímia do corpo e metáfora da poética romântica, marcada pelo primado da subjetividade, para a qual a liberdade é um valor absoluto e qualquer sujeição, portanto, equivale à morte.

Esse poema, representativo de uma tendência marcadamente engajada na poética de Cacaso, conforme pode ser observado na composição que dá nome ao livro em que ele foi publicado - "Grupo escolar " - e em muitas outras, porta questões subjacentes à sua proposta estética. A mais relevante é aquela que aponta para uma disputa pela bandeira da contestação ao controle da linguagem administrada pelo poder, razão de uma viva contenda com outras vertentes.

Cacaso polemiza com os representantes literários da oposição reformista, aos quais criticou de maneira contundente: "O que tais poetas da esquerda oficial ainda não aprenderam é que não há engajamento possível fora da lição modernista, onde o engajamento prioritário é o da própria forma literária, onde se desenvolve uma ação crítica no domínio mesmo da criação." (BRITO, 1997, p. 122) A crítica acerba acusa-os de maior queda para a oratória do que para a poesia, de desleixo artístico, de prática de uma poesia autocomplacente, dotada de um populismo paternalista, demagógica, de um maniqueísmo primário, repartindo o mundo entre o Bem (os oprimidos) e o Mal (os opressores).

Observe-se a demolidora denúncia de Cacaso aos estreitos limites estéticos da poética do autor mais representativo dessa tendência:

Caso muito curioso, sobretudo pela receptividade que alcança pela audiência que preenche, é o Thiago de Mello, cujo engajamento tem qualquer coisa de macumba para turista. Sua poesia combina o ranço paternalista de nosso populismo de gabinete com uma outra tradição, bem brasileira, a do poeta-bacharel, de fluxo incoordenado e palavroso, eloquente e comemorativo, anunciando sempre a Aurora que virá, a Esperança que não morre, o Amor que não acaba, tudo enfático e solene. A completa falta de humor que se instalou na poesia brasileira, passando por 45, pelo Concretismo etc., atinge em Thiago de Mello uma inautenticidade tão grave que quase impõe o respeito. Depois de escrever um "Estatuto do homem", que raia pelo bestialógico, aproveitou o gosto do momento e fez um poema de louvor da anistia. Não duvido que venha por aí qualquer coisa sobre os índios... No Brasil há os que fazem poesia, e os que fazem carreira de poeta. Thiago de Mello faz carreira de poeta engajado. (BRITO, 1997, p. 168)

Cacaso procura retomar e adaptar à nova realidade as preocupações de Mário de Andrade com o engajamento do artista reveladas em O banquete, obra da última fase do autor de Macunaíma, na qual há uma grande preocupação em dar um caráter social à obra de arte, em torná-la participante ativa dos problemas da sociedade, numa atitude autocrítica a alguns aspectos do modernismo e numa condenação tácita aos procedimentos literários isolados da empiria. Cacaso retoma a pesquisa, a participação e a liberdade defendidas pelos escritores de 22, por isso aos seus olhos a poesia limitada à mera expressão de bons sentimentos e eloquentes manifestos contra a opressão revela-se uma falsificação do engajamento artístico, perde a validade ao construir um poema com pensamentos comuns à esquerda, porém desprovidos da inquietação da linguagem, da pesquisa da forma, além de exibir uma insuportável harmonia com o universo acadêmico. Daí o pomposo, o retórico, o convencional em uma forma artística conservadora, transformada em metrificação de slogans e palavras de ordem.

A necessidade de demarcar terreno no ambiente urbano, implica apresentar-se como signo livre de dependências estéticas ou ideológicas em relação aos poderes que autorizam a legibilidade da cidade. Distinção similar à defendida por Adorno:

Teoricamente ter-se-ia que distinguir engajamento de tendenciosismo. A arte engajada no seu sentido conciso não intenta instituir medidas, atos legislativos, cerimônias práticas, como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o parágrafo do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se por uma atitude: Sartre, por exemplo, pela decisão, como condição do existir frente à neutralidade espectadora. (ADORNO, 1973, p. 52)


Ainda na disputa por visibilidade dos signos poéticos no ambiente urbano, Cacaso voltou-se contra a cristalização de uma noção de vanguarda despregada do chão da cidade, uma vanguarda olímpica, acima das imperfeições, como se fosse tradução para a técnica poética do planejamento racionalista do espaço, uma arquitetura cujo traçado deve ser seguido pelos habitantes, um projeto destinado a ser sofrido pelos destinatários como o ponto máximo de evolução da modernidade.

O poema "Estilos de época", também inserido em Grupo escolar, representa com nitidez as objeções à vanguarda concretista:

Havia
os irmãos Concretos
H.e A. consanguíneos
e por afinidade D. P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados. (BRITO, 2002, p. 152)

A ironia do título incide sobre o tom professoral assumido pelos poetas criticados, especialmente à prática de ministrar lições de vanguarda como se houvessem descoberto um modelo matemático e único, sem o qual qualquer procedimento inovador ficaria desautorizado.

A virulência de Cacaso alcança os nomes dos autores concretistas, reduzindo-os a simples letras: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari convertem-se respectivamente em H., A. e D. P. Subtrai a assinatura singularizante da obra de arte e assinala o rigor e a funcionalidade de um planejamento lógico e matemático. Ou seja, uma forma implícita de condenar o reducionismo praticado pelo concretismo, a valorização objectualista da palavra em detrimento de todos os vetores que entram na construção da rede de significados do poema. Nessa crítica pode ser observada a radicalização das assimetrias entre as metáforas elaboradas por Ítalo Calvino (CALVINO, 1990, p. 84-85); cristal e chama (que não são antitéticos no objeto de arte, mas diferentes modos de construí-lo) tornam-se posições enrijecidas em perspectivas opostas: a vanguarda - resultante de uma atividade programada em moldes científicos, o poema próximo a uma experiência de laboratório - e uma poesia bruxuleante, construída com a memória das ruas e a sensibilidade do artista, cujo caráter inovador somente poderá brotar da práxis poética, não se constituindo em parte de um programa prévio. O enrijecimento de postulações teóricas é representado pelo verso "dado é a palavra dado", limite de uma poética incapaz de enriquecer o legado mallarmaico, cuja filiação é sublinhada no verso "em sutil lance de dados", e da qual torna-se prisioneira ao cair em um universo circular sob a forma de uma linguagem tautológica apontada por Cacaso.

A imagem triangular do final do poema reforça todo o conteúdo crítico dos versos anteriores; mais que imagem geométrica é uma representação da onipotência divino-literária, remetendo à Santíssima Trindade.

A crítica realizada no poema aparece em inúmeros textos críticos de Cacaso, talvez em nenhum momento de maneira mais nítida do que no ensaio "A atualidade de Mário de Andrade", cuja leitura é fundamental para o entendimento da concepção crítico-teórica do autor de Lero-lero:

O poema é considerado "concreto" sempre que o seu significante assuma o caráter icônico, de aparência imediata, das artes visuais. Com a abolição decretada do verso em geral, a noção de experimento em poesia vai se confinar e se confundir com o trabalho sobre a matéria gráfica do texto; a palavra passa a interessar pelo seu lado de fora, a sintaxe torna-se espacial. E o nexo do poema passa de interior a exterior. A atualização de meios expressivos não está nesse caso, como esteve no romantismo e no modernismo, associada à intenção cognitiva e crítica, mas visa sobretudo inserir a arte no ritmo do tempo, na era da indústria moderna, com seus processos instantâneos e massificados de comunicação. As técnicas do concretismo são as mesmas da publicidade moderna, dos anúncios, com a manipulação da sonoridade expressiva e do universo da visualidade. A noção de experimento, combinada com a pretensão de radicalidade, é confinada à sua dimensão técnica, tomada como plena, e estamos diante da inovação pela inovação, da pesquisa entendida como tarefa intelectual, desprovida de necessidade intrínseca e consequente. (BRITO, 1997, pp. 164-165)


O concretismo, aos olhos de Cacaso, tentou dar legitimidade estética à linguagem da publicidade, tomando o código visual como única linguagem poética ao expurgar a poesia de qualquer possibilidade de verso, tido como técnica ultrapassada. A vanguarda, com isso, instaurou uma nova retórica sintetizada numa espécie de manual de instruções: o plano-piloto para poesia concreta. A cidade tecnológica, a ideologia industrializante, a presença do mercado (através de estratégia de manipulação e consumo) e a transformação dos signos urbanos em fetiches estéticos ajudaram a engendrar o conteúdo programático do grupo Noigandres.

A irrupção do concretismo como linguagem modernizadora segue as mesmas necessidades reguladoras do projeto arquitetônico da modernidade implantado por Le Corbusier. O remodelamento do espaço urbano significou banir a concepção aparatosa, ornamental, presa à técnica de "vestir" a cidade e preocupada em deliciar o olhar. A planta moderna moldou-se sobre racionalismo, funcionalismo, economia, síntese e leveza. O planejamento anexou estruturas fordistas e tayloristas, transformou a casa em "máquina de morar". A concepção de intervenção reguladora, a valorização da planta como diretriz a ser aceita pelos habitantes fica evidenciada na afirmação de Le Corbusier "A planta é geradora” (LE CORBUSIER, 2002, p. XXX), esclarecida mais adiante no mesmo texto, sob o título "Os traçados reguladores": "A obrigação da ordem. O traçado regulador é uma garantia contra o arbitrário. Proporciona a satisfação do espírito" (LE CORBUSIER, 2002, p. XXX). Esse projeto espacialmente revolucionário, remanejando formas e volumes, sustenta-se numa ideologia do progresso, do otimismo empreendedor. Quando o pai da moderna arquitetura afirma - "A moralidade da empresa se transformou; a grande empresa é hoje um órgão sadio e moral" (LE CORBUSIER, 2002, p. 203), mais do que fornecer uma certidão de boa conduta, uma avaliação positiva, toma de empréstimo às formas econômicas os conceitos plásticos de remodelagem do espaço urbano. A modernidade é pensada como o ponto mais avançado, o caminho a ser seguido, uma construção exemplar, à frente do coletivo e servindo-lhe de parâmetro. A cidade não comporta conflito, discussão, elementos aleatórios, desordenados, fora de controle. A planta é traçado regulador e determinador dos caminhos individuais. Os responsáveis pelos traçados, nesse caso, só podem ser pequenos deuses ou indivíduos eleitos, acima dos demais cidadãos a quem cumpre apenas sofrer os atos mágicos emanados de especialistas do bem-estar, do bem-viver e do urbanismo.

Se a valorização máxima da expressão livre, dos ritmos próprios e originais e do caráter antioficial do modernismo apontavam criticamente para todas as regiões da cidade, a vanguarda concretista concentrou-se em áreas nobres, reservadas à movimentação dos eleitos, daqueles que, mais do que exprimir a modernidade, monopolizavam a sua prática como únicos engenheiros e proprietários de novas linguagens. 


O modernismo não se constitui na única referência histórica de Cacaso. Há uma presença constante do sopro romântico em suas composições, ora sob a forma de paródia, ora sob a forma de uma nítida filiação. Observe-se, como exemplo da segunda alternativa, o poema "Já já", pertencente ao último livro do autor:

Se a morte é mesmo certa
que seja também pra já
mas antes quero ouvir na laranjeira, à tarde,
cantar o sabiá

Se vier na flor dos anos
pois então que venha já
mas antes quero as três mil mulheres maravilhas
do sabonete araxá

A flor da idade floresce?
que venha a morte já já
mas que tenha, tomara, o mesmo perfume
da flor do maracujá

Bem-vinda bem-vinda a morte
que a morte venha já já (CACASO, 2002, 33)

A curta forma adverbial da palavra que funciona como título ao ser duplicada expressa uma temporalidade acelerada, o aproveitamento rápido e integral da existência condensada no minuto que passa. Instantaneidade sob a forma de uma música cuja alegria do ritmo poderia contrastar com a presença da morte, inscrita em todas as estrofes como marca de sua inevitabilidade, se a esta não tivesse sido subtraído o aspecto assustador.

O primeiro verso do poema relativiza o peso da morte através de uma estrutura condicional - "se a morte é mesmo certa" - capaz de suavizar o tom absoluto do tema. A sua vinda, portanto, resulta menos de uma inexorável finitude humana e muito mais da invocação feita pelo eu lírico reiteradamente ao longo da composição. Algo, no entanto, antepõe-se entre o chamado e a morte: a vontade de viver três experiências distintas. Os terceiros versos dos quartetos rompem o predomínio da redondilha maior; apesar de introduzidos pela conjunção mas, usada para estabelecer contraste com a vinda da morte, explicitam as condições estabelecidas pelo eu lírico para que tal ação ocorra.

No primeiro quarteto, há remissão  ao lirismo saudosista do poema "Meus oito anos", de autoria do poeta romântico Casimiro de Abreu: "Que amor, que sonhos, que flores, /naquelas tardes fagueiras / à sombra das bananeiras, / debaixo dos laranjais!" (ABREU, s/d, 41) A essa referência acrescenta-se um dos símbolos fundamentais do romantismo brasileiro para compor a musicalidade e dar colorido à cena natural: o sabiá (cuja inserção no poema faz aparentemente menção a Gonçalves Dias). Os elementos tomados à flora e à fauna revelam os limites de qualquer valorização de motivos naturais como formadores de uma suposta brasilidade. A poesia não está naquilo que se olha, mas no próprio modo de olhar. O desenho poético é construído a partir do espaço urbano que tanto fornece a linguagem com a qual se escreve a Natureza quanto o código que permite selecionar e inventar o passado. Conhecer-se é também se reconhecer em outros signos da cidade. A natureza paradisíaca, a pureza de seus frutos , o canto de um pássaro, a fruição do tempo que passa longe do tumulto urbano, tudo é uma estrutura anelante do tumulto das ruas. Quanto maior é a asfixia das metrópoles, maior a necessidade de uma utopia naturalista. É o local de inscrição do poema uma das marcas diferenciadoras entre o romantismo de Casimiro, eivado de sentimentalismo e nostalgia, e o de Cacaso, desafiador e hedonista. As grandes mudanças no ambiente urbano, apontadas por Argan, sustentam essa distinção: "Hoje a cidade não pode mais ser considerada um espaço delimitado, nem um espaço em expansão; ela não é mais considerada espaço construído e objetivado, mas um sistema de serviços, cuja potencialidade é praticamente ilimitada." (ARGAN, 1995, 219)

O ato de criar também é um processo de demarcar territórios no labirinto urbano. Demarcar-se, no presente, de práticas similares implica também investir e inventar territórios históricos. Por esse caminho o passado não é uma província remota, mas uma presença no agora das formas do antes. Como o tempo não restitui os seus significados, essa presença é o preenchimento da ausência com a invenção de significados para os signos flutuantes da historicidade. Se a própria vanguarda concretista inventa uma tradição - Pound, Joyce, Mallarme, Oswald, Sousândrade - também Cacaso recorta do passado poetas como se fossem ruas de passagem para alcançar a própria identidade.

A segunda estrofe constrói-se em torno de citação da "Balada das três mulheres do sabonete Araxá", de autoria de Manuel Bandeira, mediante um processo de intensificação representado pela multiplicação das mulheres e pelo deslocamento do substantivo maravilhas para a função de adjetivo, o que remete ainda para a presença da indústria cultural, assim as mulheres do sabonete araxá convertem-se também em mulheres-maravilhas, representação mítica da mulher sob o capitalismo norte-americano. Recupera-se poeticamente a área dos luminosos urbanos, da propaganda impressa, do anúncio como linguagem da modernidade. A mitologia urbana é caligrafada em textos de embalagem de produtos industriais, suas formas produzem o sonho, acendem desejos. O mito nasce do prosaico. Cacaso incorpora a síntese da poética bandeiriana: a poesia parece ser desentranhada do chão do cotidiano mais prosaico e brotar inesperadamente, num súbito alumbramento.

O último quarteto marca a irrupção da morte, mas não há nele nada de assustador, em que pese a mudança assinalada no primeiro verso, sem a forma condicional das estrofes anteriores. Embora aconteça em plena flor da idade, a vinda não desperta temor nem gera um tom dramático. O aspecto pungente é amenizado pelo perfume da flor do maracujá. Fruto e morte partilham o terreno da natureza, identificada, através da flor, como brasileira.

Cacaso retoma a preocupação romântica com a valorização de signos que possam funcionar como demarcadores territoriais, como pode ser verificado no poema "A flor do maracujá", de Fagundes Varela: "(...)/ / Pelas tranças da mãe-d'água / Que junto da fonte está, / Pelos colibris que brincam / Nas alvas plumas do ubá, / Pelos cravos desenhados / Na flor do maracujá. / / (...)" (VARELA, 1971, 90). A último estância do poema é um ofertório, no qual ao invés da amada surge a morte e condensa-se o conteúdo das estrofes anteriores.

O poema funciona estruturalmente como uma canção, marcada pela presença de três estrofes curtas seguidas do dístico final e pela visível associação com a música, assinalada por diversas formas de reiteração que lhe dão um ritmo leve e veloz.

O romantismo foi o responsável pela reintrodução da canção na poesia ocidental, particularmente da forma popular e folclórica. Isso justifica a presença de várias referências a autores e símbolos pertencentes a esse período. Por outro lado, Manuel Bandeira talvez seja o poeta modernista mais imbuído de uma musicalidade natural, inata ao seu processo criador. O poema, contudo, não se limita a fornecer o chão histórico no qual se desenha a poesia de Cacaso. A morte, ainda que inevitável, não abafa a alegria de viver, curva-se ao desejo do eu lírico. A vida é tão forte, tão intensa, que só resta à morte prestar-lhe obediência. A morte, por esse viés, não rima com dor, sofrimento, desespero romântico ou com "a-vida-que-não-foi" bandeiriana. Ela pode vir com a velocidade que quiser porque o indivíduo vive em plenitude. Ao contrário da espera anunciada nos últimos versos do poema "Consoada", de Manuel Bandeira – "Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar. " (BANDEIRA, 1973, 221) ¬–, o vivente em "Já já" não possui nenhum motivo para esperá-la, para viver como se fosse um bom menino fazendo o dever de casa, deixando tudo arrumadinho e com medo de não ter feito a coisa certa. Não poderia fazê-lo, afinal vive na flor da idade. A vida se irradia por todos os poros.

Nada impede a percepção da necessidade de uma crítica a monumentalização do passado. Ela aponta para a sobrevivência de formas românticas como sedimentação de uma cidade em ruínas, chão onde não ocorrem mais eventos, cuja sobrevida significa um processo de mumificação e sacralização canônica, significa ainda transformar os poemas de pulsantes e renováveis possibilidades de interpretação em troféus e medalhas de significados enrijecidos em antologias de dupla natureza: vitrina e túmulo. Cacaso, na esteira de prática modernista, pode parodiar essa tradição. É o que concretiza no poema intitulado "Jogos florais":

I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?) (CACASO, 2002, 157)

As palmeiras continuam a expressar nacionalidade, porém já não estão infladas da visão ufanista romântica e bacharelesca. O canto perde beleza e majestade, o humilde e prosaico tico-tico substitui o sonoro sabiá. Este de símbolo passa a estorvo: além de emudecer, torna-se uma praga a furtar comida. Através dessa ação nociva no plano simbólico o autor denuncia a ingenuidade da perspectiva nacionalista na literatura, a crença romântica prolongada em vertentes modernas de literatura engajada de que o nacional corresponda necessariamente a um valor positivo. O sabiá destronado da imagem idílica e flagrado em ato infame é a tradução da ideia de que o nacionalismo naturalista é um signo da ideologia da classe hegemônica. A nação não corresponde a um conceito natural e unificador de todos os habitantes da cidade; ao contrário, é o palco no qual as forças sociais travam constantes batalhas. Desde a reforma de Haussmann na Paris do século XIX, isso se tornou visível nas ruas: "Isso faz do bulevar um perfeito símbolo das contradições interiores do capitalismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada, que conduz à irracionalidade anárquica do sistema social que mantém agregadas todas essas unidades." (BERMAN, 1992, 154)

A modernidade surge de modo negativo, como perda de autenticidade e valor. A imagem da água que em vez de transformar em vinho vira vinagre metaforiza a modernidade como queda. A razão não realiza o sonho de progresso para todos, como já haviam percebido Adorno e Horkheimer: "O absurdo desta situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional". (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, 49)

Berman propõe a existência de um dualismo constitutivo da formação da modernidade:

Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao "modernismo", encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da "modernização", um complexo de estruturas e processos materiais – políticos, econômicos, sociais – que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (BERMAN, 1992, 129)

No poema de Cacaso, no entanto, o dualismo não aponta para a fusão entre modernismo e modernização. Ao contrário, parece claro o caráter beligerante entre as duas faces da modernidade. A relação entre modernismo e modernização é bastante complexa, são ao mesmo tempo faces da modernidade, professam intenções progressistas e protagonizam, simultanemante, um combate de formas antagônicas. Ora o modernismo tenta a conciliação, assumindo a tecnologia arquitetônica da modernização e seu processo acrítico de domínio sobre a natureza e evolução incessante das formas da cidade - proposta contida na estética do fascismo, do concretismo e de outros movimentos em que se busca a homologia entre o pensamento e a administração do espaço urbano -, ora volta-se contra a apropriação da legenda da modernização por poderosos e iluminados projetistas que subvertem os efeitos das promessas iluministas ao fornecerem exclusão e invisibilidade para a maior parte dos habitantes da pólis e cumprirem o ideário apenas para uma espécie de nova aristocracia alojada em bunkers urbanos como uma corte imperial num zoológico.

Presente em Grupo escolar, publicado em 1974, a modernização contestada é especificamente o processo de planejamento burocrático e imperial de uma ditadura militar, cuja sustentação foi forjada por promessas de progresso. É interessante como as formas mais arrojadas do desenvolvimento econômico recorrem à linguagem teológica: "milagre brasileiro", eis o signo da modernização sofrida por Cacaso e sua geração. A incorporação do teológico não se restringe somente à época ditatorial, à censura e à engenharia megalomaníaca de obras faraônicas, de visibilidade barroca e majestática sob a forma de técnicas urbanísticas sofisticadas. Diante da cidade única, do pensamento único, da programação do destino via genoma, da domesticação de qualquer rebeldia, da construção de um padrão universal de vida, do sequestro da ciência pelas linhas de financiamento de pesquisa, da cumplicidade da intelligentzia cooptada em nichos acadêmicos, midiáticos ou políticos, da confusão entre os princípios provincianos da política norte-americana e o simulacro de democracia exportado para todos os povos como mercadoria balsâmica empacotada pelas empresas imperiais e agências de terroristas oficiais do Império, torna-se difícil perceber que formas de racionalidade podem sustentar o paradoxo em que caiu a modernidade: o caráter absoluto, imutável, imperial, uma rede que não pode ser rompida, um imperativo categórico kantiano, um fluxo eterno de poderes dispersos e cruéis, a impossibilidade de outros possíveis, um mundo com a forma definitiva, cristalizada, oxidada. Esse existir onipotente transformou a modernidade em nova divindade. Se Deus estava morto, não havia necessidade de ser ressuscitado. Isso não aconteceu sob a forma canhestra de uma ciência-franskestein como se pensava anteriormente, mas sob a forma reticular de uma labirinto onde se leva uma vida inautêntica, ambiente tão flutuante que pode ser identificado como modernidade terminal ou pós-modernidade, sem que seja modificado o mal-estar. Felizmente a cidade não está mais sob controle (se é que algum dia efetivamente esteve) de planejadores: há guetos, áreas não administráveis, zonas sombrias, áreas móveis, novas, loteamentos clandestinos, territórios não demarcados. A cidade expande-se à revelia de seus habitantes.

Eucanaã Ferraz registra com propriedade essa metamorfose urbana:

A pluralidade é o corpo da cidade. A dispersão é seu modo. Sua economia é o excesso. Seu mecanismo ensaia uma aberrante perfeição, já que, enquanto máquina, parece haver eliminado a outrora necessária presença humana para conduzi-la, consertá-la, alimentá-la com novos dados, interrompê-la, etc. A cidade tornou-se um organismo tão perfeito, tão complexo, que experimenta – e aqui contrário o mais básico dos conceitos sociológicos – uma condição de verdadeira natureza. Seus signos são de tal maneira específicos, suas leis obedecem a uma ordem tão interna, que cada vez mais os os campos de saber procuram estabelecer novos métodos para penetrar essa espécie de outro mundo, esse misterioso planeta, esse perigoso fundo do mar - a cidade. (FERRAZ, 1978, 148)

A poesia marginal aponta para a mudança do plano da cidade ao forjar uma prática capaz de recusar o lugar marcado e criar o seu próprio espaço como um acontecimento.

A segunda parte (que pode ser lida como poema autônomo) leva a paródia aos limites da brincadeira, da blague. Avança além do prosaico e parece aproximar-se do terreno estranho à arte, cuja demarcação, no entanto, é traçada com as linhas do desejo de poesia. Demarcação observada por Argan: "Na atual condição da cultura admite-se até (por exemplo, nas poéticas dadaístas) que o mesmo objeto possa ser, simultaneamente, arte e não arte, bastando para qualificá-lo ou desqualificá-lo como arte a intencionalidade ou a atitude da consciência do artista ou, até, de espectador." (ARGAN, 1995, 20)

Um mecanismo de silenciamento apaga a invocação a Palmares. O ambiente urbano foi pervertido por vozes de ocupação. A resistência esvazia os significados e repousa num exercício de metalinguagem que alia o nonsense à infantilização com raízes no primitivismo modernista. O poema adquire um tom farsesco próprio a um folguedo popular. O desalinho da poesia radica numa fuga anárquica, a poesia sobrevive encurralada em becos despidos de habitabilidade, refúgios à prática inquisitorial dos novos controladores do centro nervoso da cidade. Aparentemente a insegurança, transformada em esquizofrenia, alcança até a norma culta, colocando em dúvida as prescrições ortográficas emanadas por legisladores gramaticais que depuram a linguagem de erros e ousadias. Surge, então, de modo imprevisto uma poesia de resistência. A paródia de Cacaso incorpora o humor e a ironia como contraponto à seriedade reinante na sociedade. A alegria dá um novo sabor ao signo poético. É sob o reinado da inversão, da irrupção do lúdico, do riso que o ar sombrio é contestado, a gramática subvertida e a coerência da linguagem científica corroída. A contestação não ganha força por obedecer a forças canônicas de oposição, seu poder resulta de uma poesia que não reduz o viver a qualquer forma de domesticação.

Após a demarcação da poética de Cacaso de outras operantes no ambiente urbano, depois de tentar estabelecer o desenho histórico de que se nutre, resta buscar aquilo que a singulariza enquanto proposta artística. Para isso faz-se necessário recorrer ao poema "Na corda bamba", contido no livro homônimo:

Poesia
Eu não te escrevo
Eu te
Vivo

E viva nós! (CACASO, 2002, 55)

Aparentemente há uma dissonância entre o título e o texto: o primeiro, equivale a um caminho repleto de dificuldades, a um movimento que envolve astúcia e perigo; o segundo, enuncia uma proposta vitalista, vazada em alegria e descompromisso, cujo verso final soa como uma proclamação ingênua e otimista. Uma análise mais acurada do poema, acompanhada da observação sobre o lugar ocupado por ele na totalidade da obra poética e sobre as reflexões teóricas do poeta-crítico, pode ajudar a depreensão de um sentido mais profundo.

Hugo Friedrich observou a importância da tensão dissonante na formulação da poesia moderna: "A poesia quer ser (...) uma criação autossuficiente, pluriforme na significação, consistindo em um entrelaçamento de tensões de forças absolutas, as quais agem sugestivamente em estratos pré-racionais, mas também deslocam em vibrações as zonas de mistério dos conceitos". (FRIEDRICH, 1978, 16) A tensão de "Na corda bamba" surge da impossibilidade de convívio entre o espontaneísmo propagado e a intencionalidade criadora das formas artísticas. O mesmo autor ainda aponta para a inconsistência da absolutização da intimidade como instância criadora e para ilegibilidade de poesia como linguagem do estado de ânimo:

O conceito de estado de ânimo indica distensão, mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir. É justamente esta intimidade comunicativa que a poesia moderna evita. Ela prescinde da humanidade no sentido tradicional, da "experiência vivida", do sentimento e, muitas vezes, até mesmo do eu pessoal do artista. Este não mais participa em sua criação como pessoa particular, porém como inteligência que poetiza, como operador da língua, como artista que experimenta os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto qualquer, pobre de significado em si mesmo. (FRIEDRICH, 1978, 17)

A publicização da intimidade e do vocabulário efetuada pela poesia marginal, através de todo um processo artesanal de confecção e distribuição de livros, pode ser entendida como uma resposta à privatização da esfera pública operada pela ditadura militar. A intimidade resulta da violenta pressão exercida pela censura e falta de liberdade, não corresponde necessariamente à reação ingênua e escapista. É produto da tensão entre o impulso criador e o fechamento de espaços urbanos. As tribos marginais medram do insulamento e constituem-se em nômades urbanos sempre migrando para novos espaços. Essa movimentação fortalece os laços entres os artistas e afrouxa os contornos entre proposta estética e comportamento geracional.

"Na corda bamba" aponta para os limites da poesia marginal. Expor a igualdade entre vida e poesia é anular a autonomia do processo artístico e suprimir o signo poético do universo citadino. Se cidade, indivíduo e poesia formam uma única dimensão, os signos poéticos pulverizam-se no devir, subsumidos na referencialidade concreta da cidade e na prática existencial do seres.

A gratuidade como ponto de partida e pressuposto da criação artística é abordada em vários textos do poeta-crítico, sempre tomando por base as práticas estabelecidas pelos autores modernistas. É o que fica patente no ensaio "Alegria da casa":

Para o artista, porém, pela natureza mesma do seu fazer, a possibilidade de autoemancipação vai-se confundir com a preservação da indispensável preeminência de seu arbitrário pessoal, significando assim a conquista de um pré-requisito que faz parte de sua própria definição e condição de possibilidade. Do ponto de vista da criação, autonomia quer dizer mais ou menos gratuidade, finalidade desinteressada, portanto aquilo que no plano ideológico seria mais um horizonte, um ponto de chegada, no plano artístico é ponto de partida pressuposto de sua existência. O modernismo, para quem a criação é igual à realização, em ato, de um ideal, é portanto um esforço empenhado mas em prol da gratuidade, da autonomia das coisas e dos valores, um jeito de constranger para que a espontaneidade pudesse aflorar sem constrangimento, o que em si já configura um paradoxo. (CACASO, 1997, 180)

A questão apresentada por Cacaso aponta para a coexistência irresolvida e extremamente produtiva dentro do modernismo entre o calculado e o espontâneo. Essa fronteira de delicado equilíbrio constitui-se em uma verdadeira corda bamba. É a partir dessa linha oscilante que o artista pode desoficializar a poética da cidade, liberando-a da expressão de interesses imediatos e não assumindo nenhum engajamento instrumental, mas um engajamento da forma. Somente a gratuidade é capaz de travar o combate da arte enquanto tal, concebido como um engajamento sem retórica. A arte postula a liberdade como um dado prévio, já é um espaço de liberdade, portanto não a apresenta como um horizonte a ser alcançado, porém como condição prévia de sua própria existência, demarcando-se com isso das concepções estéticas da "poesia oficial de esquerda". Dessa maneira, há possibilidade de denunciar outras poéticas que circulam no universo urbano como degrau de subida na carreira social, instrumento de celebração e homenagens, retórica prestigiosa autossatisfeita e sob outras formas.

Nessa visão poética disposta a abolir a estabilidade e a permanência de valores, a gratuidade chega a ser proposta como valor absoluto:

...a obra verdadeiramente artística é, em certo momento e de certa forma, tão interessada em si mesma que é tida como desinteressada, tão livre e aventureira a ponto de deixar uma consciência onisciente como a de Mário ‘absolutamente incapaz de julgar qualquer coisa'. O pressuposto da criação nesse caso é a absoluta gratuidade proposta, uma desobstrução em regra das finalidades que não sejam as da própria coisa, num ato integral de liberdade e jogo automotivado. (CACASO, 1997, 192-193)

Cacaso incorpora as técnicas dinâmicas do inacabado, propostas por Mário de Andrade (cuja influência teórica é intensa em sua visão crítica), na construção de uma "arte malsã, corrosiva e solapadora, voltada para a crítica e a negação das formas esclerosadas da vida presente." (CACASO, 1997, 194)

Os riscos da valorização dessa gratuidade não eram desconhecidos e foram bem sintetizados na análise feita por Cacaso da produção poética de Chacal, um dos autores mais importantes da poesia marginal: "As contradições começam a se esboçar: ao propor uma quase coincidência entre a poesia e a vida, isso resultaria, no limite, no desparecimento, por desnecessidade, da própria poesia." (CACASO, 1997, 24)
O poema "Um homem sem profissão" é a síntese dessa visão de mundo:

Já que estava à toa resolvi fazer um poema
Agora faço pra ficar à toa (CACASO, 2002, 57)

O título já fornece um alinhamento crítico-poético às proposições de Oswald de Andrade. Se a disponibilidade engendra o poema, uma vez criado carrega-se de significados: nasce da disponibilidade, sua conclusão remete a ela, no entanto, não se esgota nela. Esse é o paradoxo indicado por Cacaso: a criação se dá no intervalo entre o calculado e o espontâneo, entre a necessidade de construir signos e a liberdade de construí-los de qualquer lugar da cidade.


Nota

[1] Ver principalmente os artigos "Engajamento e retórica", "Poesia comprometida" e "Atualidade de Mário de Andrade", nos quais a crítica a esse tipo de poesia é explicitada.


Referências

ABREU, Casimiro de. Poesias completas. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
_____; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 3a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 4a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BRITO, Antônio Carlos de. Lero-lero. São Paulo: Kosac & Naify, 2002.
_____. Não quero prosa. Org. e seleção: Vilma Arêas. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, Rio de Janeiro, RJ: Editora da UFRJ, 1997.
_____. A palavra cerzida. Rio de Janeiro: José Álvaro, Editor, 1967.
FERRAZ, Eucanaã. "O poeta vê a cidade." Poesia sempre, n° 16, Fundação Biblioteca Nacional, out. 2002.
_____. "Poesia como semiologia da cidade." Terceira margem. Revista da Pós- Graduação em Letras da UFRJ., n° 3. A cultura das cidades e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1978.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
VARELA, Fagundes. Poemas de Fagundes Varela. São Paulo: Cultrix, 1971.
* Artigo publicado na Revista Garrafa, n° 3, maio/agosto 2004, programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.


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