(Velhas) Palavras (novas)*
* Resenha publica no Caderno B - Ideias & Livros - do Jornal do Brasil, em 20/11/2010.
Claudia Drucker, em A palavra nova: diálogo entre Nelson Rodrigues e Dostoiévski, aproxima o universo dos dois autores, mediante um paralelo entre o caráter modernista-conservador das ideias de Nelson Rodrigues e a visão dostoievskiana de busca de um ponto de equilíbrio capaz de levar à realidade russa as transformações promovidas pelo desenvolvimento científico e econômico da Europa Ocidental sem corromper as suas mais caras tradições.
A relação entre obra e contexto de época permite a autora avançar na compreensão daquilo que conceitua como “palavra nova”, trazendo à cena a face messiânica e profética dos dois escritores, flagrados em um mesmo olhar impregnado de desconfiança quanto à assimilação das propriedades essenciais da modernidade, apesar da distância geográfica e temporal entre ambos.
O diálogo proposto alcança sua máxima intensidade ao analisar a obra jornalística dos dois autores, marcada por uma visão poética e religiosa com a qual filtram os múltiplos acontecimentos mundanos. Através da palavra, tanto expressam a autoconsciência de dois países às margens da civilização ocidental, quanto vislumbram, na resistência à assimilação cega dos novos valores, a possibilidade de romper o círculo da eterna subordinação. A abertura à palavra nova corresponderia, portanto, à construção de uma alternativa ao modelo de progresso importado das nações centrais.
A estudiosa considera inconsistente a discussão sobre o pan-eslavismo de Dostoiévski e sobre as tendências autoritárias de Nelson Rodrigues, cujo apoio à ditadura, no entanto, foi público, atenuando-se apenas a partir da comprovação de torturas em seu filho. Prefere a autora, sob o pretexto de que ambos assumiram uma grande hostilidade à hierarquia, aproximá-los de uma posição anarquista. Tese que nos parece muito ousada. Não se pode atenuar o reacionarismo de Nelson, suas posições francamente antimodernistas e antiprogressistas, operando uma espécie de limpeza ideológica, até porque suas simpatias políticas não diminuem a importância de sua obra, assim como não o livraram de constantes problemas com a censura. Também nos parece que, em relação a Dostoiévski, torna-se esgarçada a delimitação entre a posição do romancista e a dos anarquistas.
A autora, contudo, questiona com pertinência as repetidas críticas feitas ao teatro rodrigueano, acusado de ser alienado e vulgar. Reforça, assim, características modernistas salientadas por Sábato Magaldi: o diálogo coloquial e conciso, a ambientação urbana, a ruptura da linha do tempo e a ênfase na vida interior das personagens.
Os traços mórbidos nos textos de Nelson Rodrigues são intensificados após presenciar o assassinato de seu irmão, Roberto, por motivos passionais. Nelson chegou a afirmar: “A morbidez é a coisa mais rica, mais válida do meu teatro”. A morte também molda os textos de Doistoiévski, que, à semelhança de Nelson, dela esteve muito próximo: acusado de conspiração, foi preso e condenado à morte, só sabendo da comutação da sentença depois de ser colocado diante de um pelotão de fuzilamento.
O texto jornalístico rodrigueano alcança a sua forma a partir dos anos 1950, numa espécie de resposta ao impacto da modernização da imprensa. A expressão “idiotas da objetividade” assinala a resistência ao império da informação. Nelson é o autêntico herdeiro de um velho tipo de jornalismo, imbuído de emocionalismo e poesia, presença viva em suas crônicas esportivas.
A experiência jornalística de Dostoiévski, iniciada em 1861, tem seu ponto culminante no Diário de um escritor (1973-1881). O jovem seguidor das ideias liberais de Herzen e Bielínski, participante do círculo de Petrachévski, no qual se discutiam textos de Fourier, Owen e Proudhon, após dez anos de exílio na Sibéria, abandona suas concepções, ruptura para a qual concorreu viagem efetuada a alguns países europeus. Essa fissura, no plano da ficção, pode ser observada nas diferenças entre Recordações da casa dos mortos e Memórias do subsolo.
Ao examinar o diálogo do romancista russo com correntes filosóficas e políticas constitutivas da intelligentsia, a autora o inclui no rol dos niilistas, deixando-o, contudo, numa categoria à parte: “ O niilismo é a forma mais radical do humanismo”. Radicalidade logo explicitada: “Antes de Dostoiévski, o niilismo significa apenas vontade de destruição. Depois dele, significa a tentativa de encobrir a falta de sentido com uma falta de sentido maior ainda”. Não por acaso, em Os irmãos Karamázov (1880), antes de Nietzsche, anuncia-se a morte de Deus.
Nelson Rodrigues ainda é um caso de amor e ódio, já Dostoiévski parece despertar desde o início a mais profunda simpatia do leitor. Os dois viveram às turras com a modernidade. É precisamente na refração ao processo de modernização observada na obra de ambos que a ensaísta formula a tese do livro: a possibilidade de construção de outra civilização a partir de um olhar periférico. A palavra nova (novoe slovo) é aquela que dará voz e universalizará culturas marginais.

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